Poucas cinematografias cruzam melodrama e dramaturgias jurídicas com a galhardia que os iranianos conseguem, sempre a fazer da consciência pesada uma matéria para a construção de figuras tridimensionais, capazes de ir além do fardo que a jornada filmada impõe-lhes.

É o que se vê com uma precisão de relógio suíço em “Ghasideyeh gave sefid”, a ser mundialmente exibido como “Ballad of a White Cow” (O Perdão), logo após a sua consagradora passagem pela disputa dos prémios da Berlinale 2021. A atriz e cineasta Maryam Moghadam junta-se a Behtash Sanaeeha, parceiro na realização do documentário “The Invincible Diplomacy of Mr Naderi” (2018), para filmar um conto moral enxuto, impulsionado pelo desempenho dela também diante das câmaras. Nenhuma atuação feminina até agora, neste Festival de Berlim, carrega mais subtileza e mais pujança trágica do que a dela. E o seu desempenho é galvanizado no jogo cénico com Alireza Sanifar, um ator também em estado de graça, encarnando a medida da culpa na sua máscara fácil moldada pela angústia.

Ao lado do “Albatros”, de Xavier Beauvois (com o desempenho visceral de Jérémie Renier), o drama em compasso de suspense de Maryam e Behtash é o concorrente desta maratona germânica que melhor explora as virtudes incontáveis do trabalho de um bom elenco. E Maryam tem vigor de sobra para levar o Urso de Prata de melhor interpretação para casa. Só que a vitória dela ou não, nesta sexta-feira, seria apenas um mimo (respeitando-se toda a relevância que um troféu pode ter para o futuro comercial de uma longa-metragem) a afagar uma realização que já deixou o seu nome na História ao escancarar os ditames morais da Justiça do Irão. Feridas políticas abrem-se, no filme, quando a protagonista, Maia, vivida pela realizadora, é informada de que o seu marido, Babak, recém-executado pelo governo, morreu injustamente, sendo inocente de um crime que cometeu. Foi a tal vaca do título, imolado em nome de um sacrifício em vão. Mas a parábola religiosa em torno do animal vai ser reaproveitada mais adiante, provando que até histórias sagradas podem ser relativizadas.

Dividindo-se entre os seus compromissos de realizador e o trabalho de edição, Behtash Sanaeeha monta o filme em parceria com Ata Mehrad, num registo de tensão crescente, no silêncio característico do cinema do Irão. Assim que é informada da inocência de Babak, Maia faz o que pode para conseguir punir os responsáveis pela sua tragédia pessoal, ocupando-se ainda com a criação da filha, uma pequena cinéfila muda. O assédio recorrente do irmão de Babak, um cunhado abusador, atrapalha ainda mais a sua paz , que só reencontra a mansidão quando um estranho a procura: é Reza, papel de Alireza. Ele apresenta-se como um amigo distante de Babak que deve muito ao morto. Ajuda Maia de todas as formas possíveis e passa a orientá-la na disputa com o cunhado. Mas Reza tem um segredo que está diretamente ligado ao destino fatal de Babak. E ele virá a ter um infortúnio pessoal ao longo da narrativa, que, avaliando a sua importância como potencial secundário, começa a emancipa-lo, aumentando a sua relevância em cena.

Por vezes, o guião derrapa em certas situações óbvias, como na esquemática insistência em Reza ser punido pelos seus pares profissionais pelas decisões que toma. Mas mesmo com sazonais deslizes, Alireza e Maryam levam a narrativa para um ponto que asfixia a plateia, numa reflexão sobre escolhas e amarras.

[Crítica originalmente publicada em março de 2021]

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
ballad-of-a-white-cow-o-leite-talhado-da-dividaMesmo com sazonais deslizes, Alireza e Maryam levam a narrativa para um ponto que asfixia a plateia, numa reflexão sobre escolhas e amarras.