Existe uma estrutura arquitectónica de guião em “Rengeteg – Mindenhol Látlak” (“Forest – I See You Everywhere”) – o segundo dos dois candidatos da Hungria ao Urso de Ouro de 2021 a ser exibido na Berlinale – decalcada de “Short Cuts” (1993), de Robert Altman, operando com a proposta de apresentar ao espectador “cenas da vida”, na instância de intimidade que obtiver.

O foco, aqui, quase sempre, está em violências num âmbito institucional, sobretudo o familiar. É uma mãe numa disputa com o filho pela sua (des)orientação religiosa; é um casal que discute por não poder ter filhos; são pessoas a falarem de doenças terminais e da desatenção às mesmas. Há Religião, Saúde e Matrimónio, os três tratados com maiúsculas, somo substantivos que adquirem uma avassaladora concretude na prática do dia a dia. Era mais ou menos assim no filme que deu o Leão de Ouro a Altman. A diferença é que nele não havia apenas um amontado de rizomas, havia gente, havia alma, havia confrontos que iam além da saliva de quem falava.

Não se pode dizer o mesmo da nova longa-metragem de Benedek “Bence” Fliegauf, que segue a mesma tediosa linha dos seus trabalhos anteriores, como o inclassificável “Apenas o Vento”, laureado com o Grande Prémio do Júri da Berlinale 2021 por um exotismo que não se faz notar e nem seria eticamente justificável. A sua obra tropeça, quase sempre, na desconexão entre uma premissa intelectualmente possante e uma realização que prefere ficar nas franjas das suas reflexões em vez de atacar o miolo em carne viva dos temas. Salva-se nele o doído “Ventre/Womb” (premiado pelo júri jovem de Locarno, em 2010), por ter Eva Green.

Excessivamente contido, num empenho de sugerir em vez de escancarar, para esboçar subtilezas jamais realizadas, ele é um artesão conservador que não se adequou ao chamado Outono Húngaro. Falou-se muito essa expressão quando Kornél Mundruczó ganhou o Prix Un Certain Regard de Cannes, em 2014, com “Deus Branco”, numa apoteose entre a técnica e a reflexão existencial, numa dramaturgia filosófica e caudalosa. É quase um espelho do que se viu e se vê na Roménia. Lá, nomes como Cristi Puiu e Cristian Mungiu consolidaram a Primavera Romena, a partir de a “A Morte do Sr. Lazarescu” (2005), como o mais potente movimento (ainda que circunscrito a um só país) cinematográfico das últimas décadas. Assim como eles, em territórios húngaros, realizadores como Mundruczó, László Nemes (“O Filho de Saul”) e Ildikó Enyedi (“Corpo e Alma”) colheram os primeiros frutos do que esboçou ser a onda outonal da Hungria nos ecrãs, tendo o galope do “Cavalo de Turim” – último filme de Béla Tarr, hoje o maior mestre daquela pátria na realização de longas-metragens – como modelo a ser seguido, de liberdade, de ousadia, de contenção de custos, de invenção plena.

Retomaram esse conceito com a vitória de Ildikó na Berlnale em 2017. Um novo aviso deu-se em 2018, com a passagem de Nemes por Veneza, com “Anoitecer”. Acreditou-se, que o legado de Béla Tarr – de fazer da Hungria uma terra capaz de exportar espetáculos de requinte visual, de experimentação narrativa e de alta voltagem na sua filosofia – germinaria um cinema dos mais exuberantes. Viria uma linhagem cheia de novas proposições formais, mas com respeito à tradição de Miklós Jancsó, Márta Mészáros, (em menor grau de conexão) István Szabó, para citar gigantes daquele país no audiovisual. Parte desse projeto funcionou. Este ano, a Berlinale colheu um fruto dos mais suculentos, “Természetes Fény”, doído drama bélico de Dénes Nagy a ser mundialmente lançado como “Natural Light”. Temos uma fotografia que respira em sintonia com os pulmões da sua dramaturgia. Já não se pode dizer o mesmo de “Forest – I See You Everywhere”.

Assim como fez em “Forest” (2003), Bence Fliegauf aposta numa exploração antropológica dos modos de amar nos tempos atuais, registado a partir de uma câmara claustrofóbica. Mas falta carne a um esqueleto bastante sólido. Alma, então, nem se fala.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
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