Não há como passar pela história da música pop, sobretudo a que deliciou tímpanos nos anos 1980, sem falar de Tina Turner e da imagem de emancipação que ela transmitia no cenário da representação feminina na indústria do Rock e do R&B. Talvez por isso, o filme de Dan Lindsay e T.J. Martin, apresentado na terça-feira à Berlinale 2021, soe tão frustrante, fora toda a burocracia reinante na sua montagem. De onde se esperava uma investigação complexa sobre a forma como a cantora Anna Mae Bullock (nascida há 81 anos em Nutbush, no Tennessee) tornou-se Tina Turner, mudando de nome e graduando a sua voz para além do coro gospel, veio apenas um rosário de mágoas sobre a sua relação turbulenta com o ex-marido, Ike Turner (1931-2007).

É imperdoável o comportamento abusivo que Ike teve com ela ao longo de um casamento que se confundiu com uma trajetória profissional, entre 1955-1978, mas Tina foi – e é – algo muito além desta história de dor, à qual o documentário de Lindsay e Martin agarra-se, vampírico, a sugar o sensacionalismo que se fez em torno da vida íntima de ambos. Já a grandeza da obra dela, no seu fraseado singular, é posto em segundo plano. “Tina” é só purpurina. Mas uma purpurina sensacionalista, que não consegue sequer alcançar a pujança de que necessita para discutir, com solidez, o crime da violência doméstica e os abusos do machismo.

Mesmo a profusão de imagens de arquivo que os realizadores reúnem é usada com preguiça, de modo mais ilustrativo do que reflexivo. Vemos a jovem Tina sempre no lugar da dor. E é facto que houve essa dor e que ela deve ser exorcizada e discutida. Mas Tina Turner é um ícone, não só por ter debelado esses percalços, mas por ter criado um modo singular de cantar, o que é pouco explorado no filme.

A própria condução dos testemunhos é engessada, fugindo pouco da estrutura talking heads do documentário mais popular. Não parece existir, por parte dos seus realizadores, um empenho em extrair-se um conceito, e em se abrir uma nova vereda na forma como o cinema documenta os grandes ídolos do pop, ao contrário do que se vê em filmes da América Latina, como o mexicano “Chavela”, de Catherine Gund e Daresha Kyi, ou o brasileiro “Alcione – O Sambe É Primo do Jazz”, de Angela Zoé. Nesse ponto, a ficção goleou, como se viu em “What’s Love Got to Do with It” (1993), com Angela Bassett.

Angela é uma das vozes que dão depoimentos a “Tina”, fazendo um intercâmbio entre a sua representação (avassaladora) e a argamassa afetiva que a inspirou. A sua presença é um dos poucos rasgos de inquietude num filme com inércia em excesso.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
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