Quem viu “Alma no Olho” (1973) e dançou por dentro com Zózimo Bulbul (1937-2013) naquela curta-metragem – hoje no Youtube – trava com “Mudança”, uma das mais inflamáveis atrações do Fórum Expanded da Berlinale 2021, um tipo de relação que os brasileiros chamam de “vou de volta”.
É um termo que pressupõe pertença, que sugere regresso para um lugar de onde nunca partiu-se, como é o caso das narrativas orais – e também coreográficas – dos povos da ancestralidade de África. A curta em forma de filme-dança que o ator da Guiné-Bissau leva a Berlim – um ano depois da consagradora passagem de “Berlim Alexanderplatz”, na qual era protagonista tem uma “parentela” com o clássico de Bulbul.
Para além de toda a dimensão ancestral na evocação de ambos à diáspora africana, existe uma mecânica similar de usar uma movimentação rítmica do corpo como expressão dos sentimentos, de militância, de indignação. A montagem assinada pelo cineasta do Ceará Leonardo Mouramateus (de “António Um Dois Três”) areja os brados de protesto disparados por Welket e por Joacine Katar Moreira.
Partindo de uma sobreposição de corpos por projeções de pinturas originais concebidas pelo artista Nú Barreto, Welket constrói “Mudança” como se fosse um “gerúndio”, um vir a ser, da afirmação das populações negras diante da violência acumulada ao longo de séculos a fio das mais intermináveis bestialidades.
Para isso, o ator-cineasta utiliza dois textos literários (entre a prosa e a poesia) escritos pelo seu pai, Paulo T. Bungué. A música composta por Mû Mbana dá aos poemas “Mudança” e “COBDE” uma sinestesia ainda ampla. A partir dela, Welket quebra verbetes no osso das palavras, brincando com as suas sonoridades e os seus efeitos semióticos, a nos brindar com frases como “A cor negra não é a cor do desastre”.
Ao assumir, em cena, que o seu objeto é “um povo martirizado que sofreu na carne o peso da pólvora”, o realizador dá ao ideal do #blacklivesmatter uma dimensão de beleza que amplia a sua urgência e a sua pertinência.
