Existem atores que nos ganham pelo carisma (Gérard Philipe, David Niven, Bill Murray), atores que nos seduzem pelo ativismo político (Yves Montand, Danny Glover) e existem aqueles que nos imantam pelo puro talento (Daniel Day-Lewis, Tony Leung, Denzel Washington, Milton Gonçalves). Mas há uma quarta categoria: a dos atores essenciais. Profissionais que misturando carisma, talento e um certo grau de mobilização política tornam-se símbolos do seu tempo, metonímias vivas do modo como vivemos um certo período da História.

Jérémie Renier, da Bélgica, é um deles. Aos 40 anos, ele ganhou fama como inspiração para os irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne, traduzindo todo o princípio hiperrealista da obra do duo, esgotando todas as ferramentas fabulares da encenação para trabalhar apenas com o real no seu estado mais seco e bruto. O seu desempenho em “A Criança” (Palma de Ouro de 2005) é de um desespero como nem Anna Magnani foi capaz de transmitir. A passagem por essa matriz de modulação semidocumental não limitou o leque de proficiências cénicas do belga, permitindo-lhe brilhar tanto nas experimentações sensuais de François Ozon (como “Potiche” e “O Amante Duplo”) quanto em biopics como “My Way” (2012), a história do cantor Claude François (1939-1978).

No meio do caminho, ele ainda encarou a Nueva Onda latino-americana com “Elefante Branco” (2012), de Pablo Trapero, e passou pela Portugal para turistas de Ira Sachs em “Frankie” (2019). E a cada passo dessa andança, Renier foi solidificando o seus gestos e silêncios – em especial este – que, agora, em 2021, pode ser contemplado com um prémio de melhor interpretação, na forma de um Urso de Prata, na Berlinale, por “Albatros”. O título anglo-saxônico “Drift Away” tem sido mais difundido na carreira internacional da nova longa-metragem de Xavier Beauvois, que, aqui, parece estar a léguas (em evolução) de todos os maneirismos esbanjados no seu (superestimado) “Dos Homens e dos Deuses” (2010). A contenção na sua dinâmica de direção já vinha de “O Preço da Fama” (“La Rançon de la Gloire”, 2014), mas alcança mais potência agora.

É de secar a garganta a maneira como a câmara, modulada pela fotografia de Julien Hirsch (de “Lady Chatterley” e de “O Exercício do Poder”), flana pela Normandia e consegue deixar uma sensação de aspereza mesmo nos ambientes mais húmidos, onde as águas são paisagem omnipresente. O mundo onde vive Laurent, o protagonista, vivido magistralmente por Renier, é regado de sonhos. Para um policia duro e eficaz, ele parece ter ternura demais, o que já se nota na sua relação com a namorada, Marie (Marie-Julie Maille, também impecável na atuação). Eles têm uma filha, mas nunca casaram. Ele, contudo, sonha com uma festa de casamento, e ela, não, quase numa inversão das representações arquetípicas de género. Laurent é amado por todos e querido, sobretudo, pelos colegas que se divertem com os seus planos náuticos de visitar o mundo num barco.

Passamos um bom tempo da narrativa conhecendo-o, sabendo como é o seu mundo exterior (e um pouco do interior) e vendo o universo do seu trabalho. Beauvois não se apressa a entrar (e cair) logo em viragens e em incidentes incitantes ao lidar com o guião escrito com Frédérique Moreau e a própria Marie-Julie. Não é um filme SOBRE um incidente, mas COM um incidente, onde o mais importante é saber quem Laurent era e o que vai-se tornar. E, num domínio pleno da narrativa, mesclando suspense e drama numa medida que só o recente “Custódia Partilhada” (2017), de Xavier Legrand, conseguiu, Beauvois leva-nos a sentir zero necessidade de uma mudança brusca na rotina da sua personagem. Ele já é um mundo gigante em si, com muito a ser explorado. Mas há que tirar o mundo da órbita. E uma morte cai bem nessa função.

Quando menos se espera, lá pela metade do filme, os planos de Laurent são dragados depois que ele mata, acidentalmente, um agricultor suicida que tentava deter. O sujeito queria matar-se com uma espingarda e Laurent disparou na perna para impedi-lo. Mas o tiro atingiu uma artéria e o homem não resistiu. Esse tiro faz com que Laurent seja investigado pelos colegas e oficiais que sempre admiraram a sua conduta ética ilibada. Essa investigação ameaça destruir a sua vida em família e a sua paz.

A partir daí, o vento (ainda seco) muda: a direção agora é cada vez mais para o âmago de Laurent, espaço que Renier escancara a fórceps, numa devastadora composição psicológica, onde mergulhamos na fratura interna de alguém que passa a duvidar da própria retidão, colocando em xeque o valor da bondade. Não a bondade cristã, mas a bondade da corrente e consciente atenção aos dilemas do próximo.

Nesse aspecto, Beauvois reitera o seu cinema de autor que, com constância (e pertinência), disseca a perceção que todos temos das nossas virtudes ou ambições. Nos seus filmes, inclusive no dos sacerdotes heróis de “Dos Homens e dos Deuses”, a escolha de ser bom, justo e diligente nem sempre é vista da mesma forma pelo próximo, o que exige dialética. E a dialética que cabe nas asas de seu “Albatros” é medida pelo empenho de Renier em espatifar o que Laurent tem de mais letárgico: a compreensão de si mesmo. Só o mar pode resolver. E o mar, num filme que aposta na secura, é mostrado de uma forma como raras vezes se viu no cinema, com luto e melancolia.

[Texto escrito originalmente em março de 2022]

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
albatros-asas-abertas-para-o-voo-rasante-de-um-ator-seminal“Albatros” é medida pelo empenho de Renier em espatifar o que Laurent tem de mais letárgico: a sua compreensão de si mesmo.