Bem antes de “Toni Erdmann” (2016) devolver ao cinema alemão uma popularidade similar àquela desfrutada nos melhores tempos de Fassbinder, Wenders e Herzog, um filme em forma de ritual de desapego – aos pretéritos perfeitos e imperfeitos que o motor económico da Europa viveu no pós-Guerra – devolveu àquela indústria audiovisual a sensação de entrar num fenómeno global: “Adeus, Lenine!” (2003).

Fenómeno de bilheteiras com um faturação estimada em 79 milhões de dólares, o filme chamava a atenção pelos atos picarescos de um rapaz para proteger a sua mãe do choque de saber da reunificação das duas Alemanhas. Mais do que um apanhado das espertezas da personagem, havia no filme de Wolfgang Becker uma estrela nata: o teuto-espanhol Daniel Brühl. Muitos jovens atores não americanos (Gael García Bernal, Louis Garrel, Riccardo Scamarcio) apareceram no alvorecer do século, mas poucos alcançaram uma trajetória como a dele. Fez filmes de culto (“Inglorious Basterds”), disputou o Globo de Ouro (com “Rush”), fez séries (“O Alienista”) e ainda oxigenou os vilões da Marvel, no papel do Barão Zemo, em “Capitão América: Guerra Civil” (2016).

Agora, aos 42 anos, ele lança-se da realização de longas-metragens com “Next Door” (“Nebenan”), podendo alcançar o Urso de Ouro, em parte pela precisão, mas igualmente pela aposta no risco.

Autocrítica pura e aplicada, “Next Door” é uma espécie de “Birdman” jovial. Assim como na oscarizada comédia dramática de Alejandro González Iñárritu, a imposição de um filme de super-heróis como chave para o sucesso de um ator é alvo de debate. Mas diferentemente da personagem de Michael Keaton, que vivia à sombra de um Batman de penas, o Daniel encarnado por Brühl, na trama escrita por Daniel Kehlmann, ainda não fez uma “Liga da Justiça” na sua vida. Ele está a um passo de fechar um contrato para um projeto com vigilantes mascarados. Fala-se em dado momento de um “Darkman 2”, sem conexão com o filme de Sam Raimi.

Amusement Park Film GmbH, Berlin 2020, “Nebenan”

O ponto aqui é: para alguém que é lembrado por uma série sem qualidade que fez na TV alemã, fazer cinema comercial é um trampolim – mais para o estrelato do que para a sua realização pessoal. Mas Daniel tem filhos para sustentar e uma vaidade enorme para alimentar. Consciência pesada ou não, ele tem uma viagem a fazer e um contrato para assinar. Mas, para isso, uma cerveja ajudaria. E eis que ele pára num bar. Só que poderia ter escolhido um lugar diferente. Nada contra o atendimento ou as bebidas. O problema é que um dos clientes, Bruno (o genial Peter Kurth), vem de um lugar parecido com o de Daniel e sabe que a gentrificação uniu os dois: um anónimo como ele e um aspirante a superstar. E Bruno está sedento para falar disso, ou talvez fazer um pouco mais.

Entre os dois estabelece-se uma relação especular, ainda que com alguns reflexos às avessas. É uma relação que Brühl, como realizador, desenvolve como uma peça teatral, onde os atos são separados por um arejamento do palco principal (o bar), com sazonais saídas dele, para respirar, para tentar ir-se embora.

Num desses momentos, um casal pede-lhe uma foto. Ela acredita ser um pedido de fã, mas não. A mulher do casal só quer que ele a fotografe com o namorado. Ela pouco sabe quem Daniel é. Nesse momento, já nem ele sabe quem é. Tudo se embaralha, mais ou menos como em “Sleuth – Autópsia de um Crime” (1972). A diferença é que, com Brühl, mesmo no momento de maior vertigem e de maior perigo (para Daniel), o riso não perde o pique, nunca, e a montagem de Marty Schenk nunca desacelera.

A tal “Next Door” aberta é, não apenas, a compreensão de que todos encenamos aquilo que acreditamos crer, mas é também uma referência a uma nova Alemanha que se abre a partir de uma reconfiguração urbana.  É ainda um novo caminho para um artista gigante, como Brühl, que vê a sua potência ampliar-se.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
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