Durante as filmagens de “A Sereia do Mississipi” (1969), o homem que mais amava as mulheres nas telas, François Truffaut (1932-1984), lacrou: “Quando se pode alternar o humor com a melancolia num filme, alcança-se o sucesso, mas quando as mesmas coisas são alegres e melancólicas em simultâneo, é simplesmente maravilhoso”.

Natalie Morales, a Annie da série “Santa Clarita Diet”, é a prova viva de que o pensamento do maior cronista audiovisual das agruras do querer ainda é pertinente, como ela comprova no Festival de Berlim na sua estreia na realização de longas-metragens, com “Language Lessons”. Ok, a Berlinale começou hoje, e já com gigantes como o sul-coreano Hong Sang-soo, mas a César o que é de César: a realizadora entregou o primeiro achado do evento alemão deste ano, logo na abertura.

Tudo funciona à perfeição, no timbre do coração, numa história de amizade (ou mais) via Zoom entre uma professora de espanhol Cariño (a própria Natalie, com os seus olhos repletos de passionalidade) e Adam, um ricaço que acaba de se tornar viúvo, com a morte do marido. O papel dele foi confiado a um inspiradíssimo Mark Duplass, que escreveu o argumento junto com a realizadora.

Em cartaz nos EUA em “The Little Things”, roubando cenas de Denzel Washington (se é que isso é possível), Natalie chamou a atenção do cinema com a sua participação no louco “Stuber” (2019), ao lado de Dave Bautista e Kumail Nanjiani – e com ela em cena, ninguém olha para eles, dado o carisma que esbanja. Aos 36 anos, ela vem assinando curtas-metragens desde 2013, quando tinha 28. A passagem para as longas ocorreu em fina sintonia com as transformações interrelacionais fomentadas pela pandemia, com plataformas de reuniões online. Essas transformações, contudo, não são apenas no âmbito da conversação em si, mas também no conteúdo do jogo afetivo. O distanciamento propiciado por dispositivos como o Zoom pode estimular extravagâncias (como se vê num dado ponto etílico de “Language Lessons”), mas ele fomenta muito mais novos engenhos comunicativos de abordagem. É o que Natalie decanta na sua narrativa afinada também com uma tónica um tanto rara em festivais, mas que parece estar em ribalta nesta Berlinale: as RomComs, as comédias românticas.

A bela longa de estreia da atriz americana de origem cubana é um “Sleepless in Seattle” do após pós-modernidade, com todas as variáveis de arquétipos de género possíveis.

Construído com sutileza por Duplass, Adam não lida com a sua sexualidade a partir de sensos absolutos: já teve um relacionamento com mulheres, mas apaixonou-se por umhomem e foi bem feliz no seu casamento com ele. Foi o marido quem pagou o pacote de aulas online com Cariño (Natalie). Mas o seu amado morre num acidente nas primeiras cenas. Não vemos, mas a sua tristeza revela o ocorrido. O mesmo se passa com as cicatrizes que Cariño ostenta na sua face. Quem bateu, como e por que a gente não sabe bem. Sabemos – aí sim – que os dois criam uma simbiose de almas ao longo de cada módulo de um curso informal de idiomas, falado meio em Inglês, meio em Espanhol, e muita linguagem da carência.

A edição afinada de Aleshka Ferrero mantém as três línguas na mesma desinência, a da emoção, sem que o formato de “janelas” das salas de Zoom (e genéricos) torne-se monótono.

É uma simples narrativa de boy meets girl, mas com a poesia da simplicidade no seu apogeu.              

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
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