Os clichés povoam por aqui em todas as direções, ora no argumento, ora nas personagens, sequências e tudo mais além, mas ainda assim esta energética obra de ação francesa regada a doses furiosas de velocidade, polícias corruptos e lutas corporais bem encenadas consegue cativar o espectador para além da mera sensação que já viu isto tudo em qualquer lado. 

E nem é preciso ir muito longe, pois ainda há um ano a Netflix estreou o remake de um filme francês (À Queima-Roupa) onde um enfermeiro era obrigado a praticar crimes para salvar a namorada sequestrada. O espírito em constante fuga da personagem ressoa por aqui mais que a história (bem diferente), mas isto serve principalmente para explicar que o cinema francês há muito que gosta de colocar anti-heróis em situações de sobrevivência complexas, a ter de lutar contra tudo e todos para provar a sua inocência, qual Richard Kimble, qual quê.

Tudo começa com um mero assalto, com Lino (o nosso mecânico de serviço) a rebentar com quatro paredes de betão com o seu Renault Clio cotidiano para aplicar o golpe. Ele é traído à última da hora por um cinto de segurança emperrado, sendo posteriormente detido e resgatado por um polícia que quer a sua ajuda para travar um grupo de narcotraficantes com apetência para a velocidade. Voltas e voltas depois, apreensões e detenções pelo caminho, o homem vê-se envolvido numa conspiração que o vai obrigar a andar em permanente fuga, algo que ele sabe que só se resolve quando conseguir provar a sua inocência relativamente a um assassinato que não cometeu. 

Energia não falta ao jovem estreante Guillaume Pierret, que realiza e escreve um argumento que transforma o ator Albert Lenoir num homem em fuga do lado certo da justiça, capaz de distribuir pancada com tons realistas e estilizados, mas nunca gratuitos e exagerados, com espectáculo mas sem glorificação. Na verdade, nesses confrontos, parece que Pierret vai buscar mais influências a oriente que a ocidente, à linhagem Gareth Evans, preferindo filmar a fisicalidade dos corpos em luta em quadros fechados pela proximidade, atraindo o espectador para o centro dos conflitos mano-a-mano onde tudo aquilo que está à mão (uma cadeira, gás pimenta, etc) serve como arma de sobrevivência (“Coucou“, Jackie Chan). 

E Pierret demonstra saber filmar sequências de ação, criar a tensão e fazê-la transbordar em doses limitadas, não esquecendo pitadas de humor pelo caminho – como aquele em que Lino luta contra uma série de polícias numa esquadra e um detido sentado vai servindo de claque. E no meio disto tudo, consegue o mais difícil: criar uma empatia do espectador com alguém que teve uma segunda oportunidade na vida, aproveitou e agora tem a liberdade em risco.

É aí que o filme prova que, apesar de ser em todos os sentidos um conceito derivativo, consegue ainda assim ter uma identidade, uma marca além do filme enclausurado em algoritmos e tiques do género.

Não nos espantaria se depois desta “Bala Perdida” viessem mais, com ou mais velocidade, lutas e até romance, até porque o filme carburou o suficiente para antever o nascimento de uma nova franquia…

Pontuação Geral
Jorge Pereira
Hugo Gomes
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