Quando Patrick Hamilton escreveu a peça Gaslight em 1938, que teria duas versões cinematográficas (1940, por Thorold Dickinson; e 1944, por George Cukor), provavelmente não imaginava que esta iria gerar um termo universal para uma forma de manipulação psicológica em que informações falsas são apresentadas à vítima com a intenção de fazê-la duvidar da realidade, da sua própria memória e perceção: o gaslighting. Ele certamente também não imaginaria que iria inspirar Douglas Sirk a realizar o noir “Sonha, Meu Amor” (1948), que Jonathan Rosenbaum classificou como thriller “menor”, e que, 80 anos depois, este “seu conceito” iria se cruzar com a história escrita por HG Wells em 1897, intitulada “Invisible Man” – que geraria várias versões/adaptações cinematográficas pelas mãos de nomes como James Whale ou Paul Verhoeven (Hollow Man)

Enquanto assistia a este “O Homem Invisível” do australiano Leigh Whannel, que de “menor” só tem a escala, tanto “Sonha, Meu amor” como “Meia-Luz” (de Cukor) vieram à memória, não apenas pela clara exposição de abuso psicológico, mas pelo repescar para tempos pós #MeToo da toxicidade masculina numa relação que obriga uma mulher a uma jornada de emancipação e libertação de um verdadeiro cativeiro psicológico em que foi encerrada por um predador.

Conhecido por fazer muito com pouco dinheiro (veja-se o subvalorizado “Upgrade, ou “Saw”, que coescreveu com James Wan), Leigh Whannell embarca num filme de um grande estúdio com a espinhosa missão de finalmente dar nova vida à galeria de monstros da Universal. Se os filmes de grande orçamento e fama – “Drácula: A História Desconhecida” (2014) e “A Múmia” (2017) – falharam no ressuscitar deste universo (havia intenção de criar um universo partilhado dos “monstros” da Universal), este “O Homem Invisível” é um verdadeiro triunfo, tão interessante e minimalista como propenso a não ter o êxito comercial que merece.

O “problema” (que não é problema, mas raridade em objectos com ambições de blockbuster) é que a tal escala é diminuta e a espetacularidade e grandeza épica dos projetos anteriores é substituída por um íntimo drama de horror doméstico focado num microcosmos familiar cuja figura central é Cecília Kass (Elisabeth Moss sublime), uma mulher que vive numa relação abusiva e que tenta escapar dessa condição logo ao abrir da película. E se inicialmente tudo se aproxima a uma espécie de versão atualizada de “Dormindo com o Inimigo”, filme no qual Julia Roberts finge a própria morte para escapar das garras do companheiro, rapidamente Whannell – que domina os códigos de suspense e não se esquece de pequenas referências ao passado fílmico da personagem – transforma tudo numa das mais negras e ousadas observações modernas aos efeitos traumáticos de clausura física e psicológica de uma personagem testada vezes sem conta sobre a sua perceção e realidade.

E fá-lo num embrulho moderno de psicanálise (o homem abusador como omnipresente, quando ela está já físicamente longe dele) que apela à tensão “Hitchcockiana” progressivamente ensurdecedora, onde a banda-sonora de Benjamin Wallfisch evoca os trabalhos de Bernard Herrmann para o cineasta britânico, e onde o “respirar” de Moss (excelente trabalho no som) e a sua caracterização dizem-nos mais do seu estado psíquico que qualquer palavra por ela proferida.

Claro que nos tempos que correm, qualquer obra com a temática de emancipação feminina é inventariada como projeto feminista (muitos falarão em feminismo radical), mas como a história do cinema demonstra, o tema não é de agora. Dito isto, o que mais surpreende é a Universal ter aceitado a “descida” da escala do “monstro” do seu catálogo (um espelho do real e do dia a dia, como diriam Guillerme Del Toro e Micheal Pearce), e o mais curioso é que com este “passo atrás”, deu três e quatro à frente em termos de qualidade e resultados.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
critica-invisible-man-horror-monstro-moderno-ve-senteLeigh Whannell constrói uma das mais fascinantes adaptações da obra literária de HG Wells