É um filme absolutamente capital, impressionante pelo espanto que provoca, com Adam Sandler num hipnótico estado de graça: uma Nova Iorque num alvoroço como há muito não víamos, um turbilhão de ruído que atravessa todos os recantos de uma cidade em constante movimento, imparável no tráfico de capital e matéria prima. É um luxo: candidato a melhor filme do ano, obra prima da carreira dos irmãos Safdie.

Olhando para o percurso que trouxe a dupla de realizadores Ben e Josh Safdie – dois irmãos que ao longo da década passada reclamaram para si o título de reis incontestados de Nova Iorque – até o momento eufórico que é este “Uncut Gems Diamante Em Bruto”, não será muito difícil reconhecer-lhes uma força criativa em estado puro, um cinema com uma relação carnal e francamente alucinada com uma cidade que conhecem como a palma da mão. Mais arriscado seria supor que esse ziguezague pelas ruas de Nova Iorque acabaria por culminar numa obra prima absoluta bem antes dos 40. Nada mais errado: aqui está ela, como que a querer dizer que o cinema é uma arte viva e em permanente diálogo com o pulsar de uma contemporaneidade cada vez mais transitória, com o génio a assomar de onde menos se espera.

Não deixa, apesar de tudo, de pairar por aqui um sabor amargo (pelo menos em Portugal): pedia mesmo uma daquelas telas bem no coração de uma cidade suja e frenética, e não apenas a prisão do ecrã de computador. Mas mesmo aí, no reino desalmado que é o império da Netflix, há cinema – se há luz que brilha com um fulgor esgazeado, é a singularíssima banda sonora de Daniel Lopatin, habitual colaborador dos Safdie, e que aqui “carrega” o filme aos ombros. Cabe a Lopatin, digamo-lo sem pensar duas vezes, nada mais nada menos que a “colagem” de uma certa textura digital à materialidade de uma cinematografia evocativa de uma estética muito 80’s.

É, também por isso, um filme muito enganador: se é certo que há aqui uma atmosfera muito específica e, arrisco dizê-lo, autêntica, a verdade é muito mais perturbadora. Mais verdadeira que nunca, a Nova Iorque dos Safdie é um mito enfeitiçante, e não terá sido por acaso (nem nada inocente) a escolha em situar a ação narrativa num passado recente. Cinema total: tempo e espaço voltados do avesso, numa história contada com a pulsão de uma ansiedade angustiante.

E Sandler, magnífico Sandler! Papel de uma carreira, de uma vida, de tudo e mais alguma coisa: dá corpo e alma a um joalheiro num bairro histórico da cidade, viciado em apostas desportivas e na vertigem do jogo, um homem com o casamento nas ruas da amargura, com credores sempre à perna, sem tempo para pensar no próximo esquema que o há-de safar. Chega a ser inacreditável, um choque profundo, a forma como Sandler imprime uma fluidez fronteiriça do improviso mais livre num filme obsessivamente meticuloso. Se há, aliás, cinema condizente com a concentração implacável e gulosa da anfetamina, é mesmo este: pensado ao mais ínfimo detalhe, dá a sensação de ser um filme aberto às possibilidades do mundo. Mas não é, e quem souber ver aqui uma sombra de Brian De Palma (esqueçam o Robert Altman), vai ser capaz de se sentir como a Alice a olhar bem para o fundo da toca. Uma trip que começa numa colonoscopia e termina na mais estrelada constelação: um sublime noturno sem rival.

Superficial e saltitante: fala de tudo, e de nada. Da circulação do capital mais abstracto, à relação obscura da matéria com o mundo. Do amor eterno à amizade mais atraiçoada; do reflexo mais espelhado, ao corpo mais nu. E há aqui uma febre que apetece dizer religiosa: as coisas são o que são, mas tudo tem o seu significado.

Incontornável, obrigatório, hipnotizante.

Pontuação Geral
José Raposo
Jorge Pereira
uncut-gems-diamante-bruto-adam-sandler-cinema-totalIncontornável, obrigatório, hipnotizante.