Desde os primeiros minutos o “serial killer” de Fatih Akin aparece “dessacralizado” de qualquer estilo ou ritual: Fritz Honka (Jonas Dassler), inspirado num sujeito que assassinou quatro mulheres na cidade natal do cineasta no início dos anos 70, tenta atabalhoadamente livrar-se de um cadáver metendo-o dentro de um saco. Como tal acaba por se revelar impossível, a solução só pode ser uma: serrar o corpo da morta, que vem a saber-se mais tarde tratar-se de uma prostituta. Estranhamente, no entanto, ele “manda fora” somente algumas partes do corpo, guardando outras num buraco bastante mal vedado do sótão onde vive – e gerando uma fonte permanente de “aromas” que ele ignora mas nauseia seus visitantes…
Mais do que uma enfadonha e “limpinha” reconstituição histórica de uma personagem invulgar conforme a fórmula de milhares de filmes americanos, Akin lança-se pelo retrato visceral de um homem medonho e primitivo que surge retratado em toda a sua sordidez. E isto basta para torná-lo muito mais profundo e credível do que qualquer banal explicação de “storytelling” ou de psicologia de fundo de quintal.
Mais que isso, o filme estende-se a observar um extrato social inteiro. Este é refletido na tasca verdadeiramente “hardcore” (em termos de decadência e desespero existencial) que dá nome ao filme e que, na altura, pertencia ao bairro Red Light da cidade germânica. Ele não é só o local onde Honka conhece as suas vítimas como o “lar” de patéticos alcoólicos ou pessoas simplesmente destroçadas pela solidão ou pelo passado. O “barman” demonstra uma verdadeira compreensão do lugar quando um jovem lhe pergunta, já de manhã, porque as cortinas do bar estão fechadas. Resposta: “Para as pessoas não verem o Sol. As pessoas não bebem sob a luz do Sol”. É isso que The Golden Glove representa: uma mensagem cuja pertinência e relevância está no seu retrato da beira do abismo.
A história não é linear: o enredo dá conta não só dos assassinatos de Honka, aparentemente casuais e produtos do seu alcoolismo e da sua louca relação com o sexo oposto, como dos casos onde ele falhou.
A dado momento o filme ganha uma faceta de Dr. Jekyll e Mr. Hyde quando ele decide não beber mais e arranja um emprego estável; mas quando toca no álcool outra vez, transforma-se – e onde se unem as causas da sua loucura: o químico e o psicológico (o desejo sexual incontrolável e violento).
O realismo de uma obra que até dispensa quase totalmente a banda sonora (a música é representada por canções popularuchas que dão um toque trágico-cómico em diversos momentos) é visível no suspense sempre orgânico e nunca artificial de algumas cenas e de uma tensão constante que vêm da total imprevisibilidade do protagonista. A isso soma-se uma narrativa sem um fim aparente de uma pequena aventura entre uma ninfeta mortalmente entediada com a escola (Greta Sophie Schmidt) e um jovem admirador (Tristan Göbel) – este vindo a protagonizar um momento de “quase humor” perto do final.
Mais que tudo é um filme corajoso e pessoal, que desafia estes tristes tempos onde a crítica ortodoxa, especialmente a anglo-saxã, parece mais preocupada em oferecer catecismos moralistas aos seus leitores do que embarcar em qualquer aventura que desafie a banalidade opressiva do politicamente correto.