Na conversa com o público na sessão do Motelx onde “A Semente do Mal” teve antestreia nacional, Gabriel Abrantes dizia que realizar um filme era impedir que todo o edifício construído no guião e pelas equipas de produção e pré-produção “pegasse fogo”. É uma ideia curiosa que traz uma perspetiva invertida da concretização cinematográfica: não se trata de realizar, mas de impedir que se destrua o que está previamente construído. Nesta linha, a mansão de Abrantes não pega fogo e ainda deixa algumas pistas iluminadas na escuridão do cinema de género em Portugal.

Edward (Carloto Cotta) vive em Nova Iorque com a namorada, Riley (Brigette Lindy-Paine), mas sonha com reconstruir as linhas de uma vida familiar a qual nunca teve acesso. É então que descobre um irmão gémeo, Manuel, e o casal acaba por vir parar a um palácio em meio a uma exuberante e isolada paisagem do interior português. A mãe é Amélia (Anabela Moreira), uma mulher aparentemente saída dos terrores de um cirurgião plástico que a torturou durante os séculos – embora igualmente capaz de um momento de antologia de humor – como uma quase “monty pythiana” discussão sobre as batatas do Idaho (improvisada pela própria atriz).

A parte boa é que, não apenas não se pretende inventar a roda para assegurar a credencial para o “clube dos autores”, como a maquinaria já inventada por décadas de lides terroríficas com castelos obscuros, famílias sinistras, passados escabrosos, descobertas na madrugadas, “dons” desconcertantes e fugas e pancadarias com pás e machados, funciona com a precisão necessária. 

Pelo meio, emergem da imensidão do tempo variações sobre as agruras de Erzsébet Bathory e o desespero com o malogro da finitude (“o tempo é uma puta”, filosofia bizarramente a mamã entre os seus “liftings” aberrantes) – num mirabolante cruzamento com Goya e o seu famoso retrato de Cronos a devorar os seus filhos mal eles nasciam por medo de que o viessem a destronar. De resto, é o que disse Abrantes a responder ao público à questão se “o terror era um bom género para retratar o incesto”: “qualquer género é bom para retratar o incesto!”.

A Semente do Mal” poderá não ser distintivo o suficiente para deixar sua marca na galáxia ultra povoada da produção mundial de “thrillers”/terror mas, para a Portugal, até porque contou com o financiamento do ICA e traz um realizador credenciado por participações em Cannes e festivais de gabarito, é um sólido caminho para a concretização de um cinema popular de qualidade. 

Pontuação Geral
Roni Nunes
a-semente-do-mal-terror-a-portuguesa-e-as-batatas-do-idaho Gabriel Abrantes não inventa a roda, mas é também um filme onde se fica a filosofar sobre os “yankees” enquanto “puritanos adoradores de armas”, sobre Goya, o mito de Erzsébet Bathory, o incesto e as batatas do Idaho