Dois anos depois de Atlantis” ganhar a seção Horizontes em Veneza, Valentyn Vasyanovych retorna ao festival, agora na corrida ao Leão de Ouro, com uma “reflexão” sobre o passado recente e a guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

Se “Atlantis” era ambientado em 2025, após o fim imaginário da guerra em curso, “Reflection” desenrola-se em 2014, o primeiro ano do conflito. E a cena inicial do filme, passada num recinto de paintball, com tiros coloridos a animarem um grupo de personagens numa guerra “a brincar“, isso é apenas o pronúncio do que virá a seguir: um conflito que se arrastou por todas as rotinas da desumanidade.

O foco é um cirurgião Serhiy (Roman Lutskyi), que no início parece tentar adaptar-se à nova condição de separado da esposa. Com o conflito é transformado em soldado e mais tarde é detido pelas forças militares russas no leste da Ucrânia, onde será forçado a ajudar os seus captores no acompanhamento de torturas e humilhações brutais a outros soldados, servindo ainda de mão de obra para ajudar na cremação dos corpos que se vão amontoando como resultado do conflito e da tortura.

Como é do apanágio de Vasyanovych, pelo menos até ao momento da captura e depois dela, já que nesse momento a câmara realmente acompanha o médico a ser levado por entre cloacas, os planos estáticos e distantes do cineasta acentuam o carácter do espectador sentado perante um palco de guerra, criando uma distância considerável sobre o que vai acontecendo, sem que com isso se perca intensidade ou notoriedade da desumanidade em cena. Claro está que o cinema de Roy Andersson vem à cabeça, bem como o absurdismo de toda uma realidade que comprova o sentido imediato e passageiro da vida. A morte pode assim aparecer do nada, bem como o sentimento de culpa e a reflexão sobre heróis e covardes em tempos de conflito, uma relação tratada normalmente a preto e branco no cinema, mas que o cineasta tenda esbater através de um cinema onde a estética move a narrativa e não tanto os diálogos.

E se Roy Andersson pegou no quadro “Caçadores na Neve” de Pieter Bruegel, o Velho, e fez dele um filme (“Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência”), Vasyanovych inspirou-se também num pombo que chocou contra uma janela da sua casa para nos entregar uma história que tem tanto de fábula como de real, criando no espectador uma reflexão necessária sobre a condição humana e a noção próxima da mortalidade, e como isso nos transforma, sejamos adultos ou crianças.

O resultado é um filme magistral, simbólico, visualmente imponente e emocionalmente devastador, tudo num filme que tem ainda a capacidade de nos levar à ideia que a vida confortável que vivemos pode, a qualquer instante, ser interrompida pela realidade letal da guerra, nunca se esquecendo que os conflitos internos não terminam quando deixam de soar as bombas.

Poderá efetivamente um sobrevivente de um conflito fazer um cessar-fogo da sua condição psicológica fragilizada no pós-guerra? Nem por isso, parece Vasyanovych dizer…

Pontuação Geral
Jorge Pereira
reflection-valentyn-vasyanovych-convida-a-reflexao-em-incursao-anti-belicaUma “reflexão” visualmente imponente sobre o passado recente e a guerra entre a Rússia e a Ucrânia