Estamos num momento cultural sensível em que pode ser difícil criticar certos produtos culturais que reflectem manifestações de minorias que foram, até há pouco tempo, e continuam a ser excluídas a todos os níveis (como o mostra “Culture is Bad for you” de Orian Brook, Dave O’Brien e Mark Taylor, livro publicado o ano passado). O que quer dizer que, sendo um homem branco, o símbolo de opressão e privilégio contra o qual alguns destes produtos culturais se posicionam, pensar e interpelar estas obras pode ser um terreno minado de estereótipos, incompreensões ou mesmo só racismo (ainda que inconsciente). Vamos avançar com cuidado.

The Inheritance” de Ephraim Asili é um filme que procura explorar a cultura afro-americana e enaltecer alguns dos seus momentos menos conhecidos, ao mesmo tempo que tenta mostrar a experiência parcialmente autobiográfica de construir um colectivo que a morte da avó de uma das personagens possibilita, quer pelo espaço da sua casa, como pela quantidade de materiais que tinha sobre este tema. Uma das coisas que parece evidente, logo de início, quando muito deste material se vai sucedendo no ecrã de forma a que é impossível fazer mais do que reconhecer parte, é que, apesar dos elementos de Pan Africanismo e de uma referência passageira a Steve Biko, este é um filme firmemente fincado na cultura afro-americana, com ausências óbvias de alguns teóricos e revolucionários de outras geografias. Vamos ser generosos (como não foram connosco com este início assoberbador) e atribuir isto à impossibilidade de se conhecer tudo e reconhecer que se trata da experiência pessoal do realizador e talvez das pessoas que participaram no filme.

Com a narrativa principal a ser criada em conjunto (workshopped) e parcialmente improvisada, esta é a principal falha do filme, com as personagens a reduzirem-se a caricaturas (há uma que nunca tira os óculos escuros e não larga o seu trompete) ou, pior, a serem tão pouco empáticas umas com as outras que nos leva a questionar o porquê do colectivo. A cena final, em que alguém arruma tudo sozinho no final de um evento, parece também ir contra o que se quer fazer, enaltecer a ideia do trabalho colectivo, mas a narrativa parece ser um detalhe menor do filme e não o seu verdadeiro objectivo.

O verdadeiro objectivo parece ser, então, dar a conhecer alguns elementos da experiência afro-americana menos conhecidos. Sim, temos as referências ao Martin Luther King, Malcolm X, Stokely Carmichael, James Baldwin, Angela Davis e outros já bem conhecidos, mas o filme centra-se em dois momentos: a tentativa de ser candidata a presidente de Shirley Chisholm em 1972 e o trabalho e confrontos do movimento MOVE com a polícia, utilizando para isso imagens de arquivo. É nestes momentos que o filme consegue construir melhor o seu argumento e defendê-lo. Conseguindo mostrar a opressão de qualquer forma de organização alternativa de pessoas de cor e os extremos de violência ao qual o estado e o seu braço armado da polícia estão dispostos a chegar para evitá-lo.

Infelizmente, a excessiva proximidade com Godard (cujo poster d’”A Chinesa” aparece várias vezes) e com o cinema francês é também um dos seus pontos menos interessantes, com o filme a assumir uma posição quase subserviente em vez de procurar uma estética própria, o que se pode também dizer que funciona contra o argumento principal porque, como disse Audre Lorde: “the master’s tools will never dismantle the master’s house”. Há quem possa argumentar que a Nouvelle Vague era socialista e anti-burguesa, mas vejamos quem são os seus heróis: à parte de Agnés Varda, homens brancos, demasiado fascinados com Hollywood e a experimentação formal. Esse fascínio não lhes permitiu nunca chegar a ser revolucionários, pelo contrário, ao irem contra storytelling e a forma narrativa, fizeram com que não houvesse espaço para histórias diferentes. Isto torna-se mais evidente quando se transpõe esta teoria para a voz: a glossolalia não é capaz de mostrar os problemas com a língua, apenas impossibilita dar a palavra a quem não a tem.

The Inheritance é, então, um filme bem intencionado, quer na sua tentativa de dar a conhecer momentos menos conhecidos da experiência afro-americana no século XX e de enaltecer a necessidade do trabalho colectivo na criação de formas alternativas de organização. Infelizmente, fá-lo com recurso a uma narrativa simplista e incapaz de fazer este segundo objectivo e a uma estética que não parece ser verdadeiramente emancipadora; talvez tivesse funcionado melhor como um documentário. Sofre também da miopia que caracteriza quase todos os produtos culturais norte americanos, incapazes de ver muito além das suas fronteiras. Não deixa de ser um passo na boa direcção e parte de uma discussão necessária e que está bem viva agora.

Pontuação Geral
João Miranda
Jorge Pereira
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