Sábado, 18 Maio

Samaher Alqadi leva a luta das mulheres à Berlinale: “Recuso-me a ser gado, quero usar o meu cérebro”

A problemática do assédio e da violência sexual afeta a população feminina em todo o mundo, mas no Egipto ganhou contorno maiores quando, dois anos depois da Primavera Árabe, na famosa Praça Tahrir, em plena celebração da liberdade, uma mulher foi violada no meio da multidão e muitas outras sofreram igualmente várias formas de abuso. Esses eventos – captados pelas câmaras – levaram ao nascimento de um movimento de revolta nas mulheres do Cairo, que de faca ou câmara em punho invadiram as ruas, reivindicando por segurança, respeito e o fim da cultura machista que trata os seus corpos como propriedades.

Foi neste período também que a cineasta de origem palestiniana Samaher Alqadi começou a filmar “As I Want, um documentário que entre a militância feminista e o ensaio pessoal sobre a sua vida chegou finalmente à conclusão, sete anos depois.

Estivemos à conversa com a realizadora sobre o  seu filme, estreando mundialmente no Festival de Berlim na secção Encounters.

As I Want”, é bastante poderoso, pois não só mistura eventos da história recente e problemas relacionados com a condição da mulher no Egipto, mas simultaneamente faz uma jornada pessoal à sua própria vida. Este projeto começou há muitos anos (2013). A ideia original foi mudando ao longo desse tempo?

Comecei o projeto em 2013, no dia da Marcha da Mulher com uma faca. Foi algo muito impressionante. Queria apenas filmar algo sobre a marcha, não sabia onde ia. Decidi que a câmara e as imagens eram a melhor forma de mostrar a minha raiva com o que tinha acontecido. Comecei a filmar e consegui obter imagens incríveis daquela massa de mulheres, com as vozes bem alto, que de alguma forma serviram de encorajamento e um forma de transmissão de poder para questionar-me sobre o que sou como ser humano e mulher.

Neste mesmo ano, a minha mãe morreu. Sempre tive com ela uma relação muito complicada. Somos mulheres, mas o tipo de educação que ela queria passar para mim e para as minhas irmãs magoava-me muito. Ela adoeceu e morreu muito rapidamente, mas deixou-me de certa forma um trauma porque queria ter realmente uma hipótese de lhe contar coisas que nunca teve capacidade de aprender através da educação. Ela partiu e quase simultaneamente fiquei grávida do meu segundo filho. Isto colocou-me num espaço mental muito diferente, numa busca existencialista com a minha barriga enorme a surgir. 

Pela primeira vez na minha vida, encorajada por todas estas mulheres na rua, algo fez clique em mim. Comecei a questionar tudo o que me aconteceu na vida desde a infância. Foi assim que tudo começou. No início, era um filme sobre aquele movimento de mulheres e o que tinha acontecido à minha melhor amiga [a violada na praça Tahrir]. O poder disto tudo entrou no meu corpo e fez-me também abrir. Tenho histórias traumáticas às quais nunca me permiti falar. Decidi assim encarar todas estas coisas que vêm desde a minha educação.

E foi difícil encontrar financiamento para este filme?

Muito difícil. Era um documentário cheio do “real” e num trabalho assim não podes levá-lo para outro sítio. O que filmas faz o filme e leva-te a outros sítios. Não é fácil explicar isso em propostas escritas, por isso foi muito, muito difícil nos três primeiros anos. Eu descrevia ao meu companheiro em árabe o projeto e ele metia no papel, em inglês. Depois tivemos a sorte de os primeiros a acreditarem nele serem os canadianos da Blue Ice Docs, que foram muito generosos e colocaram algum dinheiro para o seu desenvolvimento. Depois para a sua produção. A partir daí começamos a ter apoio de outros sítios, como do IMS [Doha Film Instituct], IDFA [na Holanda] e na Palestina, do Ministério da Cultura, que me deixou muito orgulhosa.

Foi uma longa jornada. Foi muito duro, mas conseguimos. E nem acredito bem que conseguimos, pois envolvi-me emocionalmente e pessoalmente muito numa história que não sabia onde ia levar-me. E não é só por ter imagens poderosas e revolucionárias, ou mostrar o meu lado pessoal, mas uma peça para o futuro, para as novas gerações. O que vamos transmitir-lhes agora e o que nos vão devolver em ações.

Essa transmissão de valores é apresentada no seu filme, naquela cena no parque infantil, onde algumas crianças dizem-lhe que não deviam falar consigo porque está a mostrar as pernas. Que não é “decente” e não tem “honra”. Existe sempre um sentido de “vergonha” a perseguir a mulher. Isso também acontece na Palestina ou principalmente no Egito e outros países árabes?

Não é apenas nessa sequência do parque que isso acontece, mas adoro essa cena. E adoro porque foram os miúdos que vieram ter comigo. Para eles, eu tinha chegado de outro planeta. Quando estava a montar o filme e olhei para aquelas meninas, só pensava que era igual a elas quando tinha aquela idade. Senti que eram um espelho de mim antigamente. E falando de gerações e filhos, tenho de falar do conflito que existe entre mim e os meus próprios filhos, naquilo que lhes quero passar e quero que aprendam. 

Voltando à questão inicial, acho que a condição da mulher no mundo inteiro leva a que sejamos educadas a sentirmos vergonha em ser diferentes. Acredito nisso. Não apenas no Egito, mas também na Palestina. Existe sempre uma cultura de dominação do homem em relação à mulher em todo o mundo, só varia a intensidade.

Na Palestina temos a ideia que isso varia consoante a educação que as mulheres tenham, ou se trabalham, lutam pelos seus direitos, ou sejam fortes e independentes. A verdade é que final do dia a coisa mais importante para as mulheres continua a ser que existem para fazer nascer crianças. Acredito que se pensa assim em todo o lado. Pensemos quantas mulheres temos no mundo realmente com poder na política ou na liderança? Nós somos sempre tratadas de maneira diferente a toda a hora. És uma mulher, consegues fazer o que os homens conseguem. É esta a conversa que devemos ter, não apenas no Médio Oriente, mas em todo o lado. 

Fiz esta questão da Palestina porque falei há uns meses com a realizadora Najwa Najjar e ela deu-me outro retrato. Disse que as “mulheres são muito respeitadas na Palestina, talvez porque são viúvas de alguém – do marido, do irmão, dos filhos. As mulheres tomam conta das coisas, das casas. Algumas estiveram detidas e tiveram de ser empreendedoras para viver. Tenho amigas que são realmente poderosas. Nunca senti problemas por ser mulher.

Represento vozes diferentes e elas são a maioria. Sinto-me muito orgulhosa de muitas mulheres de sucesso da Palestina, tal como de muitas egípcias e árabes. Mas elas não são a maioria. Nós precisamos de mais. Precisamos da miúdas das aldeias e vilas quebrarem as tradições em que vivem. E sim, elas são educadas mas quantos direitos e liberdade realmente têm? E sim, deixam-nas fazer o liceu, a universidade, mas no fim têm de ter a certeza que vão ter um marido. E isto também acontece nas classes altas de qualquer sociedade. Elas podem ter uma janela de liberdade, mas nunca a liberdade com que sonharam. 

No ano passado vi um filme no Festival do Cairo chamado “Lift Like a Girl”. É uma obra que vem também no sentido das coisas que disse, do maior poder no feminino, pois mostra que as mulheres conseguem fazer tudo. Têm surgido vários filmes nessa região nesse sentido. Por exemplo, da Tunísia temos o “Black Medusa”, um filme de vingança onde a mulher mata realmente homens como os que aparecem no seu documentário. E até voltando atrás, do Egito também saiu há uns anos o “Cairo 678”. Existe claramente um movimento nessa região para falar da condição feminina? Apesar de ter existido uma revolução, a Primavera Árabe, houve realmente uma revolução na condição da mulher ou não houve grande evolução?

Tenho orgulho de ter estado no movimento que vemos no filme, das mulheres a levantarem a sua voz no Cairo. Isto foi uma grande conquista e acho que isso foi o que realmente ganhámos da Primavera Árabe. Esta consciência, esta maior educação em relação ao que somos e o que queremos ser, como homens e mulheres. 

É um grande movimento que ajudou as mulheres a falar. Mesmo as mais educadas, ligadas às artes não sentiam que existia uma zona de conforto. Mesmo estas mulheres super-educadas de classe alta que acham que têm liberdade, tenho a certeza que seriam julgadas se se sentassem num bar de perna cruzada a beber uma cerveja. Nós queremos que este tipo de julgamentos parem. É tão simples como isso. (…) Quero que todas as mulheres vejam o meu filme e sintam-se retratadas.

Graffiti por Mira Shihadeh

Há sequência no filme onde depois de sofrer assédio sexual começou realmente a discutir com os homens. Houve alguma situação em particular em que se sentiu em perigo? Algum desses momentos não estão no filme?

Está escrito na História da humanidade. Penso que o ser humano é um perigo, até por dizer apenas um palavrão. A conversa que tenho no filme com o meu filho é sobre uma situação que aconteceu na rua quando ele estava comigo. Vou na rua e um homem agarra-me o rabo. O meu filho não viu o que o homem fez, apenas assistiu à mãe a gritar e a começar a esbofetear o homem. Por isso, para o meu filho, a mãe era maluca. E como explicares ao teu filho porque bateste em alguém? Isto é demasiado para uma criança. “Sim, claro que tu podes tocar-me, sou a tua mãe”, mas ninguém pode fazer-te isto na rua.

Isto foi uma situação perigosa e quando decidi ir para a rua e filmar os homens que me assediavam, foi também uma escolha com perigo. E mostro isso no filme. Foi realmente perigoso e aquele homem que perseguiu-me a dizer palavrões, quando lhe respondi, transformou-se numa situação perigosa. Eles não estão habituados a ter resposta e nunca sabemos a reacção que vão ter. Há coisas que não estão no filme, como quando agarram literalmente na câmara.

Falando de uma cena completamente diferente, até pela beleza do quadro, há aquele momento em que mostra a sua barriga grávida. Está sentada e mostra o seu corpo. Essa cena, esse ato de mostrar o seu corpo foi de alguma forma um “statement”?

Sim, era uma cena muito importante. É o ventre que carrega todas as pessoas que existem no mundo. Queria relembrar as pessoas disso. Esta gravidez foi muito diferente daquela que tive quando tive o primeiro filho. Foi como disse antes, o movimento nas ruas, a morte da minha mãe, a minha gravidez despertou algo novo em mim. Com aquele barrigão sentia-me que estava grávida do Mundo. Todos nós carregamos o que somos. Respeitem.

E está confiante que as crianças de hoje vão começar a aprender isso em casa, nas escolas e na vida? Acha que vai haver uma real mudança de comportamento a curto prazo ou acha que vai demorar uma eternidade a mudarem as coisas?

Acredito que quando começamos a encarar os problemas, começa a mudança. Estamos a falar da forma como somos educados pela família, escolas, sociedade. Cultura, tradição, educação. Temos um longo caminho pela frente. Mas quando começamos a assumir que “temos um problema”, as coisas começam logo a mudar. 

Mas a religião é tradicionalmente difícil de mudar…

A religião é outra coisa diferente. As pessoas misturam sempre religião e tradição. Não sou um ser político ou religioso, mas respeito isso, desde que respeitem a minha liberdade e direitos. 

Mas por exemplo, e até vou dar-lhe um caso europeu. Temos ordens religiosas em alguns países com grande influência na alteração de leis em relação ao aborto ou questões LGBT. Por isso, existe uma vertente religiosa no poder da mudança. 

Realmente espero que isso mude. Não podemos pôr a cabeça na areia. Tudo na religião está em permanente discussão. Não consigo ver problemas em discutir as coisas até do ponto de vista religioso. Mas não me venham dizer que a religião diz isto ou aquilo e  que não há espaço para discussão. É curioso dar um exemplo dos países do ocidente. Tudo o que digo e mostro perante as câmaras foi como uma confissão e colocação em debate das coisas que nos foram ensinadas pela tradição, e talvez a religião. Debati essas questões e acho que todos temos também de fazer isso. 

Vivo atualmente perto de Paris, numa área muito burguesa, não por escolha, mas ando pelas ruas e nelas vejo muito a Palestina, mesmo que não tenha nada a ver com ela. Isto apenas porque quando levo os meus filhos à escola vejo uma jovem muito bonita, na casa dos 27-30 anos, e já com  cinco filhos. Isso porque a Igreja Católica lhes diz certas coisas. Um amigo meu francês, dançarino, casado com uma palestiniana, tem 9 ou 11 irmãos. 

Respeito todas as religiões, mas não acho que vão-me ajudar na vida. Na verdade, a religião está a tornar a nossa vida realmente difícil, pois não querem que pensemos, mas que apenas os sigamos como gado. Recuso-me a ser gado, quero usar o meu cérebro. Não sou ninguém para dizer às pessoas o que devem seguir ou fazer, mas também não quero que me digam a mim. 

Ainda recentemente houve um país (Argentina) que conquistou o direito ao aborto. Apoio todas estas mulheres que lutaram por isso. Eu mesmo nunca pensei ter de fazer um filme sobre mulheres e sobre este tema. Mas aquilo que vi à minha volta levou-me e encorajou-me a fazê-lo. E no final das contas pus na minha voz todas as vozes daquelas mulheres. 

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