Sábado, 18 Maio

“A Minha Família Afegã”: Michaela Pavlátová surpreende com drama pós-talibãs

Depois de estrear no Festival de Annecy em 2021, "A Minha Família Afegã" chegou finalmente às salas de cinema nacionais

O sempre fortíssimo cinema de animação checo tem em Michaela Pavlátová um dos seus expoentes máximos nas últimas três décadas, levando o nome do país e a arte da animação por esse mundo fora, seguindo a tradição de grandes nomes como Jiří Trnka, Karel Zeman, Břetislav Pojar, Jan Švankmajer, Vera Neubauer e Jiří Barta.

Nomeada ao Oscar em 1993 por “Reci, Reci, Reci/Words, Words, Words”, vencedora do Urso de Ouro de melhor curta no Festival de Berlim em 1995, e do Cristal de melhor curta de Annecy em 2012, Pavlátová regressa com a sua primeira longa-metragem de animação, “My Sunny Maad” (A Minha Família Afegã), uma adaptação do romance “Frista“, da jornalista e trabalhadora humanitária checa Petra Procházková, no qual seguimos uma mulher checa, Herra, que se apaixona por um afegão e segue-o até o Afeganistão pós-Talibãs, não fazendo ideia da vida que a espera ou a família a que está prestes a ligar-se.

Michaela Pavlátová

My Sunny Maad” segue uma tradição recente do cinema de animação: o visitar terras afegãs e contar histórias de sobrevivência, como vimos As Andorinhas de Cabul”, “A Ganha-Pão” e até o mais recente “Flee”, também ele a competir em Annecy. “Quando começámos a trabalhar no filme, há cinco anos, não tinha contacto ou conhecimento de nenhum filme de animação passado no Afeganistão. Quando já estávamos com ⅓ do trabalho feito é que começamos a ver que existiam ‘A Ganha-Pão‘, ‘Andorinhas de Cabul‘, etc“, explicou-nos em entrevista, via Zoom, a cineasta checa. “Na altura pensámos em parar e fazer algo diferente, mas já tínhamos avançado muito. Além disso, senti-me muito agarrada à personagem principal, a Herra. Ela tornou-se para mim como uma pessoa real, uma amiga. Senti que tinha de a trazer à vida, que não podia parar”.

My Sunny Maad” mostra um lado muito diferente de Pavlátová, que ao longo da sua carreira – tendo sempre como inspiração o trabalho do cartunista Saul Steinberg – movimentou-se em muitos trabalhos experimentais, sempre variando no estilo e nas técnicas utilizadas, fazendo a estética impor-se, de certa maneira, ao conteúdo. Aqui, como nos explicou, o processo foi radicalmente diferente: “Existe sempre um ponto na tua carreira em que sentes que deves ir mais longe. Antes deste filme fiz várias curtas de animação e duas longas-metragens em imagem real completamente diferentes do meu trabalho em animação, não apenas na técnica, mas também no tom. Quando comecei a pensar no que faria a seguir, primeiro não tinha nenhuma ideia para uma curta, que é o melhor formato que penso existir para a animação, e depois achava que devia mudar de registo, apesar de durante toda a minha vida dizer que não iria fazer longas de animação. Originalmente queria fazer um filme sobre um tema diferente e escrever o guião. Passei um longo tempo a preparar isso, mas depois cheguei a conclusão que não conseguia. Foi uma surpresa para mim, senti-me deprimida com isso e decidi que era mais fácil encontrar um guião já escrito ou um livro para adaptar. Além disso queria um trabalho que fosse além do mundo do cinema de animação, que se expandisse além dele, pois de certa maneira sinto que é um círculo um pouco fechado. Queria assim fazer uma animação onde a história era o principal e não o trabalho de animação em si. E queria uma história que não fosse fantasiosa ou destinada a crianças, ou seja, algo que gostaria de ver com uma personagem feminina forte.

My Sunny Maad

Pavlátová estava num comboio quando leu o livro e apaixonou-se imediatamente por Herra, a protagonista que mal viu Nazir na universidade checa que frequentava, sentiu que ele era o amor da sua vida. E embora a cineasta não sentisse qualquer atração pelo Afeganistão, achava muito interessante a relação da Herra com o marido. “Foi por isso que optei por este livro. O meu produtor já tinha o guião dele, mas estava planeado para ser em imagem real. Era um objeto bem diferente do que tinha feito até agora. Os meus trabalhos anteriores eram mais irónicos, com mais humor e até fortemente estilizados. Desta vez queria servir e respeitar o guião, servir a história. Queria que as audiências fossem ao cinema e até se esquecessem que o filme era de animação. Queria que o visual não fosse o mais importante e destacável”. 

A adaptação do livro ao cinema foi, contudo, trabalhada num sentido diferente ao de Petra Procházková, que construiu a sua obra literária na forma de mosaicos, de pequenas histórias. Ao invés, no filme temos um drama por inteiro, escrito por Ivan Arsenjev em colaboração com Yaël Levy. Pavlátová reconhece as complexidades de trabalhar numa adaptação, até porque é preciso deixar sempre coisas de fora. “A Petra não participou diretamente no filme, o que de certa forma foi bom. Contactei-a para falar sobre como está o Afeganistão agora, mas ela não teve interferência no guião.

Estética

My Sunny Maad

Com outros filmes de animação passados em Cabul no mercado, para o trabalho visual de “My Sunny Maad” era necessária uma identidade própria que se centrasse no visual ao serviço da história. Apesar de na altura não ter visto os filmes acima citados, a realizadora teve de se adaptar a duas realidades. A primeira era como tornar mais universal o seu estilo “punk” e “livre” de animação e o outro era aprender a trabalhar numa equipa de animadores, pois desta vez não podia, de todo, fazer todas as animações em cima da mesa. “No processo de construção visual houve também muitas mudanças, pois originalmente, o estilo era mais de esboços, mais livre. Sempre fiz os meus filmes sozinha, a solo, e de repente tive de trabalhar com uma equipa. Isso foi duro e desafiante, pois era difícil para mim aceitar o que eles estavam a mostrar (risos). Se dás personagens a animadores e pedes-lhe para eles os desenharem de forma esboçada [sem detalhes], há que questionar que esse termo é diferente para todos. Inicialmente os desenhos eram estilizados à minha forma, mas a história era muito realista por isso o estilo tinha de a seguir. Durante um ano fui desenhando as personagens, tendo o retorno dos outros, mas o produtor foi muito generoso e tentou arranjar uma solução, indo mais de encontro ao meu estilo. E foi isso que fizemos. Trabalhei as coisas com o meu estilo e depois simplifiquei para que outros animadores trabalhassem nas personagens, movimentos e backgrounds (que são bem simples), cumprindo assim também os timings de produção e do pós-produção.”

No caso de “My Sunny Maad”, a realizadora reconhece que a inspiração de Saul Steinberg, que tanto a ajudou no passado, não a iria influenciar muito desta vez. “O Bill Plympton tem o seu estilo muito próprio, porque é muito bom nele. O meu estilo é não ter estilo de eleição. É escolher o estilo que encaixa com uma história em particular. Neste filme queria ser simples e desenhar de forma simples, dando de qualquer maneira às personagens uma identidade comum. Desta vez estava concentrada em fazer personagens que não fossem caricaturas, mas significativas e identificáveis individualmente, sempre ao serviço da história”.

Sexo e humor

Quem conhece o trabalho anterior da artista checa, como a comédia “Tram”, sabe bem que o sexo e elementos mais picantes são temas frequentes na sua obra (tal como os relacionamentos), mas no caso de “My Sunny Maad” não havia esse desejo de provocação e humor. Isso não significa que o sexo não exista no filme, em particular ele é apresentado num cena que certamente poderá afastar alguns distribuidores do projeto, já que será complexo mostrar o filme como está se existirem planos de o orientar também a um público infantil.

My Sunny Maad

Este filme será sempre impossivel mostrar no Afeganistão, com ou sem a cena de sexo”, disse-nos a realizadora, acrescentando uma outra cena – em que Nazir corta a perna para escorrer sangue para os lençóis, fingindo assim que a sua recém-esposa era virgem para as outras mulheres da casa não a questionarem – como “problemática” de mostrar a um público mais infantil. 

Pavlátová explica-nos que falou diretamente com os produtores sobre como mostrar essa cena e que eles decidiram apresentá-la da forma como está. Se no futuro poderão existir alguns ajustes nessa sequência em particular (escurecer, etc), a realizadora remete a decisão para os distribuidores.

Uma professora orgulhosa

Para além de ser uma habitué constante, como realizadora, do circuito de festivais de cinema de animação, onde Annecy e a Monstra se enquadram, Pavlátová é também chefe do Departamento de Animação da FAMU (Film and TV School of the Academy of Performing Arts em Praga), instituição que todos os anos lança novos animadores para o mercado. “Sou uma professora orgulhosa, chefe do departamento de animação da FAMU, e tivemos em Annecy, há dois anos, o filme vencedor do Cristal de Melhor Filme de Escola, o ‘Daughter‘, de Daria Kashcheeva. Este ano temos ‘Sisters – Sestry‘, de Andrea Szelesová, também na competição. Estou muito orgulhosa. Estou aqui em Annecy como realizadora, mas também como uma espécie de ‘mãe babada’ por estes filmes dos nossos estudantes”..

O Futuro

Ser líder do departamento de animação da FAMU “dá muito trabalho” e para executar este “My Sunny Maad”, a realizadora disse-nos que teve de diminuir a sua atenção na faculdade para metade. Pensando na sua carreira de cineasta, Pavlátová chegou a ponderar, durante o pico de trabalho desta longa-metragem, que a seguir iria trabalhar numa curta, ou algo completamente diferente, ou até mesmo em descansar. Porém, agora que o trabalho acabou, o desejo de filmar novamente está novamente presente, tendo já um novo projeto em preparação: “Quando o trabalho de ‘My Sunny Maad‘ terminou descobri que quero continuar na animação e mais uma vez em formato longo. Desta vez, em concertação com o meu produtor checo, temos uma história em particular para seguir, a de uma mulher que nasceu como homem e que se tornou famosa internacionalmente por isso. É também uma história do século XX, pois ela era uma artista Vaudeville. O filme será sobre ela, os teatros, o Vaudeville. Seja como for, quero que o meu próximo filme seja muito colorido, muito engraçado, o oposto deste (risos). Mas temos de arranjar uma boa história. Nunca pensei muito nisso no passado, mas agora sim: a história é a base de tudo. Estamos a trabalhar lentamente neste projeto e estamos ainda no início”.

[artigo originalmente escrito durante o Festival de Annecy 2021]

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