Sexta-feira, 19 Abril

Mariana Nunes, uma estrela que expõe o falso mito da democracia racial do Brasil

Depois de eletrizar a plateia do Cine Ceará, no sábado, disparando como potencial aposta para o troféu de melhor interpretação com “A Morte Habita à Noite”, projetado em Roterdão no início do ano, Mariana Nunes avançou algumas casas a mais no tabuleiro da consagração para uma trajetória de papéis alinhados com a denúncia das desarticulações raciais do seu país. Há uma semana, os exibidores brasileiros que passaram pelo circuito exibidor para ver o thriller social “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida” sairam comovidos com o seu desempenho. Sob a direção de Jeferson De, Mariana torna-se uma espécie de Valquíria das metrópoles violentas: Cida, uma enfermeira cujo filho estuda Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro, confrontando-se com o racismo em múltiplos níveis. O mito de que não existe preconceito no Brasil e de que por lá impera uma suposta democracia racial são inquietações para ela que, hoje, é uma das estrelas mais concorridas do audiovisual na sua pátria, já comprometida com uma telenovela da Globo para 2021. Vista (e aplaudida) no Festival de Veneza em 2017, com “Zama”, da argentina Lucrecia Martel, e em 2016, em “São Jorge”, de Marco Martins, Mariana fala ao C7nema sobre um passado de distinções, um presente de prestígio e um futuro repleto de potencial.

A sessão do M8 no Odeon, no Festival do Rio, foi apoteótica, com uma ovação para o momento da discussão entre Cida e Maurício, com o brado “Cala a sua boca que eu sou uma mulher preta falando”. De que forma essa frase ecoa a realidade das mulheres pretas do Brasil e o quanto o notável trabalho que você vem construindo espelha esse pleito?

O impacto que essa cena trouxe no Odeon, no Festival do Rio, foi forte por muitos motivos. Era um filme muito esperado, muita gente queria a assistir ao “M8”, principalmente, pessoas pretas. É um filme de temática rara aqui no Brasil. Para quem é preto, é muito engraçado ver o nível que a “branquitude” chega com o seu racismo, sem se ver racista. Ao mesmo tempo, é um filme de terror. Também fala de um jovem negro que está ascendendo socialmente, quando passa a frequentar uma faculdade de Medicina. É um ambiente elitizado; logo, é um ambiente branco; logo, ele está sozinho nesse lugar.

Para qualquer negro, estar sozinho num ambiente branco é uma situação de terror, é amedrontador e horrível. É como “Get Out”, do Jordan Peele. “M8” transita nesses lugares e também é sobre isso, além de ser sobre a relação de um filho com a mãe. Por isso, essa frase causou tanto no cinema. Eram muitos negros ansiosos para ver um filme tão recente. Também, porque essa fala remete a uma das frases mais famosas da Marielle Franco. Esse diálogo da Cida parece-se muito com uma fala da Marielle e, mesmo que a pessoa não se ligue na hora que ela aparece, em algum lugar, a frase toca quem ouve, porque foi muito exibida e dita na televisão.

Quem é Cida nesse Brasil retratado por Jeferson De?

A Cida é uma mulher de origem pobre. Além de ser pobre, é negra, o que, por si só, já define qual lugar ela ocupa na nossa sociedade. Muitas vezes, as pessoas acham que o racismo é uma questão mais social do que racial, o que não é verdade. Se fosse assim, uma pessoa negra e rica não sofreria nenhum tipo de preconceito. Claro que isso é mais agravado com a questão social. A Cida, além disso tudo, é uma mulher que teve poucas oportunidades, mas, nas chances que teve, fez de tudo para se formar e ter uma qualificação profissional. Isso inevitavelmente fez com que ela tivesse um pouco mais de condição financeira e visão para educar seu filho. Ela construiu uma vida onde pudesse dar oportunidade para ele chegar à universidade. Só através do estudo – e é o que ela teve -, mas a duras penas, acredita que as pessoas podem de facto ter uma vida melhor.

Há dez anos você deixou o Cine PE com o prémio de Melhor Atriz Coadjuvante por “O Homem Mau Dorme Bem“. De que maneira aquele filme abriu alas para uma trajetória que passou por gigantes como Cláudio Assis, Lucrécia Martel e, agora, Jeferson De?

Eu nem sabia que já se passaram dez anos que ganhei o troféu Calunga de melhor atriz coadjuvante. Realmente, o “O Homem Mau Dorme Bem” foi o meu primeiro filme. Quando você mostra o seu trabalho em algum filme que começa a circular por festivais, e as pessoas do cinema começam a te ver, isso abre-te portas. As precisam conhecer o seu trabalho para de fato te convidarem ou te imaginarem no projeto delas. “O Homem Mau Dorme Bem” foi lançado em Brasília e o Cláudio Assis estava lá. Ele achou que eu poderia ser a personagem Rosângela, que ele tinha em “Febre do Rato”. Fiz o teste e peguei essa personagem. Acho que foi o meu segundo trabalho e me deu mais projeção ainda. Um trabalho leva-te a outro.

Onde é que o “A Morte Habita a Noite” entra na sua estrada?

Conheci (o seu diretor) o Eduardo Morotó por meio de um ex-namorado que trabalhava como produtor na (locadora de DVDs e produtora) Cavídeo. O Morotó ia fazer um curta produzido pela Cavídeo e ele chamou-me para fazer uma participação. Nós nos demos muito bem nesse trabalho e ele convidou-me para fazer “A Morte Habita à Noite”, numa personagem chamada Lígia. Isso tem muito tempo. Há muito tempo ele fez-me o convite e há muito tempo a gente conversa sobre esse filme. A gente já se encontrou em diversos lugares. Nós nos encontramos na época que eu estava em Portugal, para fazer o “São Jorge”. Na ocasião, o Morotó tinha ido à França para um laboratório de roteiro e depois passou por Portugal. Lembro-me de conversar com ele em Lisboa sobre “A Morte Habita à Noite”, sobre caracterização, sobre a forma que essa mulher era, sobre como era a relação com a personagem principal. Ele dava-me informações muito minuciosas. Foi um processo de muita troca, durante muito tempo. Finalmente começamos a filmar, em Recife, e foi uma delícia fazer. Foi um dos primeiros sets no qual eu me senti super à vontade. Agora o filme estreou no Cine Ceará e vai participar bastante de festivais.

Qual foi a importância de “São Jorge” (2016) pra sua carreira?

Foi super importante na minha carreira por ser a primeira produção internacional que filmei fora do Brasil. A primeira produção internacional que fiz foi “Pelé: O Nascimento de uma Lenda”. Mas esta, apesar de ter sido feita toda em inglês, filmamos no Brasil. “São Jorge” foi a primeira vez que saio do país para fazer cinema. Já havia saído para apresentar teatro. Foi maravilhosa a experiência de conhecer um set de outro lugar. Tenho muita curiosidade em saber como as pessoas filmam e como são os sets. É curioso saber como as coisas acontecem noutro lugar, assim como foi na Argentina. Passei tanto frio lá fazendo o “Zama”. Era uma época fria do ano e eu fazendo o filme usando um figurino com poucas roupas.

Falando de Portugal, era interessante ver como a equipa era reduzida e como esse filme foi feito com pouca gente. Não era um filme de alto orçamento. No meu caso, a caracterização não era tão grande. Já no caso do Nuno Lopes, a caracterização era mais pesada, por ele ser um boxeador. Tinha a questão das feridas e machucados. Foi muito bom o processo que tive com o Nuno e com o Marco, porque eles vieram para o Brasil fazer os testes. Fiz um teste e fui chamada para um call-back e assim começou nossa interação. Uma vez tendo conseguido a personagem, fui para Portugal ensaiar e acabei ficando lá até as filmagens. Foi muito importante viver em Portugal para entender o que aquela brasileira passava por ali. Isso serviu-me bastante para a construção dessa personagem. A gente aqui no Brasil tem uma imagem de cinema internacional como uma coisa muito grandiosa. Tendemos a achar que tudo que vem de fora é maior que aqui, mas essa produção foi muito pequena. Fiz produções maiores aqui, mas foi tão bom quanto.

Quais seriam os seus projetos para 2021 e onde entra o desejo de realizar e/ou produzir na sua estrada, sempre com muito a dizer?

Para 2021, vou fazer a novela “Quanto Mais Vida Melhor”. As gravações já começaram e começo a gravar na próxima sexta-feira. É uma novela que vai para o ar só no ano que vem, acho que em fevereiro ou março, e faço uma médica cardiologista, que trabalha numa clínica particular.  Sobre produzir ou dirigir, não tenho nenhum projeto, mas tenho desejo de dirigir com o Juliano Gomes, que é um parceiro de vida. Temos algumas ideias que estão procurando os seus caminhos. Até então, não há nada de muito concreto que eu possa falar para vocês.

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