Embora tivesse no seu currículo atuações de prestígio em “A Febre do Rato” (2011) e “Trinta” (2014), sempre driblando lugares comuns da representação feminina, Mariana Nunes virou um talento a ser notado e admirado entre os portugueses após a passagem meteórica de “São Jorge” pelo Lido, no Festival de Veneza, onde ela tirava um pugilista (Nuno Lopes) do seu equilíbrio e inércia. Depois vieram “Zama” (2017), “Divino Amor” (2019) e uma série premiada em Cannes (“Carcereiros”), consolidando o seu rosto em âmbito internacional, como uma das expressões de maior vitalidade da cena de atrizes das Américas. Mas depois de M8 – Quando a morte socorre a vida, o que era um holofote virou uma estrela guia: Mariana vive momentos de transcendência rara na nova longa-metragem de Jeferson De, que estreia esta quinta no Brasil. Não é uma longa-metragem de digestão fácil – assim como nada na realidade das populações negras do seu país -, o que faz dela uma experiência de ruminação… algo a ser absorvido aos poucos, para doer, em sua percepção das microfísicas do racismo numa terra onde um estudante de Medicina de periferia é sempre discriminado. Em dezembro de 2019, a sua passagem pelo Festival do Rio terminou com a conquista do prémio de júri popular e com uma menção honrosa. A força de sua sinuosa montagem – de Moema Pombo e Quito Ribeiro – justificam o encanto que a longa promove, catapultado pela interpretação de Mariana.

Num domínio pleno das cartilhas da realização, entre o thriller e o drama, Jeferson transborda autoralidade numa ponte direta com o aclamado “Bróder”, lançado na Berinale de 2010. Lá, havia uma inteligente menção a grandes ícones das lutas raciais, com a escolha de uma equipa de futebol na qual todos os jogadores eram batizados em referência a talentos negros do cinema e da TV do Brasil. Em “M8”, há uma doce menção à escritora Conceição Evaristo (de “Becos da Memória”), conforme o cineasta vai e volta às mesmas situações, de modo a expor podridões institucionalizadas. Baseada no romance de Salomão Polakiewicz, a trama filmada agora por Jeferson anuncia-se como um suspense de metafísica, com semelhança direta a “Morto não fala” (2018), de Dennison Ramalho. Em ambos, um rapaz que transita entre cadáveres consegue comunicar-se com um deles. Mas Dennison queria fazer (e fez) um (bom) filme de terror. O caminho de Jeferson é outro, bem distante da trilha das narrativas de género ligadas ao sobrenatural. O seu filme é um drama de exumação de feridas sociológicas, na qual Cida, a enfermeira vivida por Mariana é uma bússola do “pé no chão”, do realismo bruto.


O protagonista aqui é o estudante Maurício (Juan Paiva, com uma retidão de samurai). Ele é um dos poucos negros no curso de Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma instituição de ensino pública – uma das melhores no continente – que hoje luta para fintar os desmontes da Educação. Numa aula, enquanto disseca um corpo, para estudar anatomia, Maurício, ligado a religiões de matriz africanas, sente que a alma do tal corpo está por ali. Tem uma visão de um espírito desgarrado ao seu lado, qual fantasma. Essa é a sensação inicial. E, de facto, há algo de errado com essa alma, associada a um corpo (negro) batizado de M8. O ótimo Raphael Logam, da série “Impuros”, é quem vive esse cadáver em devir assombrado. Mas a inquietação de Maurício não é com “encostos” (termo para manifestações espirituais malignas) e sim com a injustiça social que reduziu aquela pessoa a uma sigla, sem direito a ter um enterro, sem uma mãe para reclamar sua pertença. Mais do que isso, incomoda o facto de todos os corpos para estudo serem corpos negros. Segue-se aí uma jornada de múltiplas vias.

De um lado, Maurício quer saber que corpo é M8. Depois, cruza com um grupo de mães… de mães pretas (como se identificam)… cujos filhos desapareceram, e assume, para si, a tarefa de ajuda-las. E, há, ainda, a cruzada de maturação de afetos daquele rapaz que amadurece a golpes de martelo e abusos da Policia Militar. Essa andança pelas classes altas vem mediada por um amor, nos beijos de Suzana, papel dado a Giulia Gayoso. Cada passo da caminhada de Maurício, na construção de seu bushidô de ronin, tem Cida, asua mãe como totem. Mariana constrói Cida como uma máquina de guerra que une leite e ferro, sendo implacável com as sazonais acomodações do seu filho, mas sendo terna sempre que ele precisa. De tempos, grandes mulheres mobilizam a produção audiovisual do Brasil com atuações de imolação, de doação, de epifania. O Festival do Rio testemunhou muitas, como Carla Ribas em “Casa de Alice” (2007); Karine Teles em “Riscado” (2010); Camilla Pitanga em “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”; Bianca Joy Porte em “Prometo um dia deixar essa cidade” (2014). Mariana integra esse grupo, ao desfilar um conjunto de instrumentos de precisão para a atuação. O seu olhar marejado de fúria evoca o quadro “Angelus Novus” (1920), de Paul Klee (1879-1940), no qual o Anjo da História afasta-se, em ascese, a olhar com perplexidade o que imagem da Terra se transformou. É assim que Cida vê a peleja diária de seu guri.

Há, na trama, um tom parecido com uma obra-prima pouco citada de Scorsese: “Bringing out the dead”, de 1999, com Nicolas Cage, traduzido como “Por Um Fio”, em Portugal, e como “Vivendo no Limite” no Brasil. Há até uma similitude na fotografia de ambos, pela maneira como ambos brincam com o chiaroscuro e com os efeitos bruxuleados de luz. Mas essa analogia não é só questão de evocação, é questão de parentela: são filmes que se irmanam, da mesma maneira como se irmana com “The last black man in San Francisco”, de Joe Talbot, exibido em Sundance e em Locarno, em 2019. São histórias sobre como nem o extraordinário (o mítico) sobrevive à brutalidade do racismo. Apoiado no roteiro de Carolina Castro e Felipe Sholl, Jeferson rompe a 4ª parede em pontos de mobilização, de distanciamento e leva-nos às veredas da indignação.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
m8-quando-a-morte-socorre-a-vida-microfisica-do-poder-sobreviverNão é uma longa-metragem de digestão fácil – assim como nada na realidade das populações negras do seu país -, o que faz dele uma experiência de ruminação...