Domingo, 5 Maio

Identidade, representação e voz: o cinema de Ousmane Sembène

A obra completa de Ousmane Sembène estará em exibição no IndieLisboa, numa parceria com a Cinemateca Portuguesa, e é firmemente aconselhada a sua visualização.

Digo isto sempre, se fosse mulher nunca casaria com um africano. As mulheres devem casar com homens de verdade, não com deficientes mentais”.

As palavras duríssimas acima proferidas foram retiradas de uma entrevista executada por Firinne Ni Chreáchain (do Centro de estudos africanos da Universidade de Birmingham) ao cineasta Ousmane Sembène algures no Senegal, por volta de 1992.

A frase descontextualizada, “horrível” dirão, vinha na sequência de um desabafo do apelidado “pai do cinema africano” para a forma como o governo do Senegal estaria a lidar com a influência americana num país que, em teoria, se soltara das amarras colonialistas francesas através da independência nos anos 60, mas que parecia permanecer submisso através de um neocolonialismo efervescente. Na verdade, já nos anos 80, Sembène lançara farpas, ironizando que o Senegal estava a entrar numa nova fase de colonização norte-americana com a chegada de “Dallas” e “Dinastia”, ironicamente introduzidos no território dobradas em francês. Anos depois, ele foi mais longe nas acusações, explicando como o entretenimento estrangeiro na televisão retirou força à cultura local, substituindo os encontros familiares onde se contavam histórias dos ancestrais. Além disso, Sembène disse: “A América é um país liberal capitalista e imperialista que apenas quer comandar. Mas se a América comanda presentemente o Senegal é porque aqueles que governam o Senegal permitem que isso aconteça. Assim, encontramo-nos perante uma sociedade ajoelhada, à espera que a América abasteça. Nunca no espaço de dez anos me senti tão humilhado com a minha sociedade como agora. […] uma sociedade não pode viver de caridade. Uma sociedade que tem a sua cultura pode confrontar todo o tipo de calamidades e adversidades de cabeça erguida. Digo isto sempre, se fosse mulher nunca casaria com um africano. As mulheres devem casar com homens de verdade, não com deficientes mentais””.

Quando proferiu estas palavras, Sembène estava a preparar-se para filmar “Samary”, projeto que nunca chegou a ver a luz do dia e que em 2017 (10 anos depois da morte do autor) voltou a ser equacionado por um grupo de produtores africanos para avançar. Curiosamente, ou não (certamente), o filme que se seguiu na agenda do realizador – depois desta entrevista dada – foi “Guelwaar”, onde o tema da dependência externa é fortemente criticada por Pierre Henri Thioune ‘Guelwaar’, um cristão que morre e que é erradamente enterrado num cemitério islâmico, provocando toda uma panóplia de conflitos e discussões entre crentes, forças da lei e os políticos populistas locais. 

Tal como todas as obras de Ousmane Sembène, a política, a condição da mulher e o colonialismo estiveram sempre na ordem do dia numa busca incessante por uma identidade pós-colonial, característica principal da chamada primeira vaga dos cineastas africanos em que Sembène foi pioneiro (abrindo portas para nomes como Soulaymane Cissé e Idrissa Ouedrago). E quando falamos em colonialismo, falamos nas marcas tatuadas numa cultura de hegemonia, quer pela imposição linguística (o ensino oficial da língua do colonizador sempre foi uma estratégia de dominação de massas), quer religiosa. E nesta temos a Cristandade vinda dos franceses (o catolicismo como instrumento de dominação), mas igualmente o islamismo, que entrou no território pelo comércio via Magreb. Na sua essência, ambas serviam como princípios expansionistas e territoriais de outras potências, e ambas tinham a missão de exterminar as crenças ancestrais locais, livrando estes “pobres primitivos” do politeísmo.

Logo num dos seus primeiros filmes, “Niaye” (1964), o realizador deixa explícita algumas das suas ideias sobre a temática da religião, ao dizer que prefere os deuses aos homens, mas a verdade aos deuses. Nesse filme, tal como em tantos outros dele, Sembène mostra como as ideias religiosas foram introduzidas numa herança ancestral milenar e adulteradas para servir propósitos egoístas de liderança, tudo de forma a encaixar  esses princípios e fazerem o que bem entendem (incesto incluído), deturpando, selecionando ideias e caindo na mais degenerativa forma de corrupção moral e humana perante súbditos que os idolatram.

Esse pensamento acompanhou-o ainda nos trabalhos literários – “Ses trois jours”, “Mahamoud Fall” e “Souleymane” são exemplos – e vê-se igualmente em “Ceddo” (1977). Em “Xala” (1975), a hipocrisia está quase toda representada numa alta figura do comércio e da política, um pai da “independência” que recusa-se a seguir certas tradições locais classificando-as como superstições “terríveis” e primitivas, mas vincando via o Islão o seu direito à poligamia (tema frequente e muito criticado pelo cineasta na sua filmografia), podendo assim casar-se com uma terceira mulher bem jovem, cujo dote foi pago com dinheiros surripiados sob a nova ordem política.

Há em todo este “Xala” uma clara mensagem crítica à nova burguesia senegalesa (que também discute numas escadarias em “La Noire De…” (1966) nos preparativos para a independência), aquela que, vinda das sombras do colonialismo, o chegou ao poder: neste caso específico, Léopold Sédar Senghor, que acreditava numa administração baseada no modelo francês, sendo mesmo defensor da “Francofonia” como princípio unificador de um país com vários dialetos. Na verdade, estamos perante uma extensão colonialista, um “facelifting” da hegemonia linguística, como diria Sembène ao longo de toda a sua vida (não é a toa que o  wolof foi o dialecto escolhido para “Mandabi”), ele que sempre posicionou as suas ideias na esfera do comunismo internacional e foi sempre um feroz crítico do “socialismo” de Senghor…

Mas para construir uma imagem do cinema, da literatura e do pensamento de Ousmane Sembène, há que desconstruir um pouco a sua vida para entender de onde as suas ideias e marcas provém, sendo redutor apenas aproximar a sua obra a outras tendências cinemáticas europeias já vincadas na história, como o neorrealismo italiano ou o cinema verité de Jean Rouch. Sobre uma eventual inspiração neste último, o senegalês disse em entrevista: “Inspirado por Rouch? Ele aplicou os seus métodos alguns anos atrás para o problema francês, mas não foi longe e não trouxe uma revolução para o cinema francês. Acho que a Nouvelle Vague de Godard e de Truffaut contribuiu com algo. Mas o cinema verité à moda de Rouch não é realmente cinema verdade nem é invenção dele. Os métodos datam dos filmes socialistas russos de Dziga-Vertov”.

Ousmane Sembène

Nascido em 1923 na região de Casamansa (assim denominada pelos portugueses quando a “descobriram”), desde cedo Sembène provou o doce veneno do colonialismo. Após a sua cedência (forçada) pelos portugueses aos franceses em 1908, Casamansa tornou-se uma área gaulesa não integrada no Senegal, sendo estabelecidas as fronteiras entre essa região e a colónia da Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau), localizada ao sul. Com naturalidade numa região marginalizada – que sempre lutou pela autonomia combatendo o Império do Mali, os portugueses, os franceses e o próprio Senegal até hoje –  e fora das quatro comunas francesas que atribuíam o “privilégio” da cidadania francesa, Sembène viria a ter essa cidadania através do seu pai, um pescador nascido em Dacar, uma das quatro comunas  “assimiladas” pelo império francês.

Expulso da escola aos 14 anos, depois de agredir o diretor da instituição, Sembène foi enviado para casa do seu tio materno, Abdourahmane Diop, na cidade de Marssasoum. Foi com ele que teve acesso à leitura, iniciando aqui um gosto (bem maior que o pelo cinema) que duraria até ao final da sua vida: o de escrever. Trabalhou durante algum tempo na construção em Dacar e integraria o exército francês durante a 2ª Guerra Mundial, experiência que certamente o levou anos depois a escrever e a realizar “Emitaï”, filme no qual o império colonial francês retira pela força os homens das aldeias e leva-os a combater pela libertação da Europa, obrigando posteriormente, através de impostos, as mesmas aldeias a entregarem grande parte da sua produção de arroz para sustentar o esforço de guerra. Eram os tempos do Marechal Petain, de propaganda nas palhotas africanas, de falsas estrelas e patentes para os negros locais, e de venda de uma ideia de honra e de histórias para contar aos netos totalmente importada da Europa e impingida aos nativos.

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