Quarta-feira, 24 Abril

Marcelo Marão: a irreverência da animação brasileira

Bizarros Peixes das Fossas Abissais

Números não mentem, mas assustam… ou surpreendem… e surpreendem positivamente se o objeto de estudo em questão for o cineasta fluminense Marcelo Marão: de 1996 para cá, dirigiu 14 curtas-metragens, que receberam 120 (!) prêmios em 605 (!!) festivais pelo Brasil e o mundo.

Neste momento, aos 47 anos, o realizador, nascido na cidade de Nilópolis prepara a sua primeira longa-metragem cujo nome é… bem, “exótico” é o adjetivo mais… educado… que se pode dizer acerca do título de um dos filmes brasileiros mais esperados dos últimos anos na seara internacional da animação: Bizarros Peixes das Fossas Abissais. E era mais… exótico ainda: chamava-se Minha Bunda É Um Gorila… assim, com cada palavra em caixa alta, pois é o nome de uma super-heroína, cuja região glútea dá lugar a um símio gigante. Essa excêntrica premissa norteia a primeira longa-metragem de um premiadíssimo cineasta que é visto lá fora como o mais inquieto animador do Brasil na atualidade: Marão.


Até a China

Realizador de cultos como Eu Queria ser um Monstro (2009) e Até a China (2005), ele é um aglutinador de talentos, no seu país natal e no exterior, tendo sido um dos criadores da Associação Brasileira de Cinema de Animação e lecionando sobre o tema em diversas instituições universitárias do país. Na entrevista a seguir, o diretor disseca o seu atual projeto e faz um balanço do atual panorama da animação brasileira.

Que tipo de heroína está a nascer no processo de confecção dessa longa-metragem?

Após catorze curtas em mais de vinte anos trabalhando com animação, esta é a minha primeira longa-metragem e, também, é o meu primeiro filme com uma protagonista feminina. Todos as curtas foram animadas em ordem cronológica, avançando e desenvolvendo a narrativa à medida que o filme era feito. Aliás, o filme ia sendo modificado e escrito também à medida em que era realizado. É o contrário da logística formal de uma produção, onde uma escala é montada, o argumento é escrito, seguido do storyboard e do animatic e somente então a animação começa a ser confeccionada, submissa às etapas anteriores.

Marcelo Marão

Nunca fiz animatic; não sigo o storyboard – animei as curtas de forma parecida com o teatro (e não com cinema), em ordem cronológica e alterando a narrativa conforme as ações se sucedem. Isso significa também mudar – ou definir, entender e construir – a personalidade das personagens conforme o trabalho avança. Na banda-desenhada isso acontece com o design das personagens, porque o desenhista “acomoda” o traço e detalhes do design à medida que redesenha dez, cem, mil vezes a mesma personagem. Em uma longa animada, desenhar mil vezes significa pouco mais de um minuto. Ou seja, cada personagem é redesenhado dezenas de milhares de vezes. O design evolui e se transforma e a personalidade também. E também pela primeira vez trabalho em um filme autoral com uma equipa (nas curtas era possível animar tudo sozinho; na longa isso seria inviável dentro do prazo) e nossa equipa é formada principalmente por mulheres.

De que maneira essa experiência modifica as suas reflexões estéticas?

Ouvir e conviver diretamente com estas profissionais em etapas que historicamente eu realizava isoladamente – como o guião e a decupagem das cenas e das ações – foi fundamental para o filme e para mim como indivíduo. O filme seria muito diferente se eu não tivesse a ventura e o privilégio de poder ouvir as opiniões da Rosaria (que está a dividir a animação principal – lead animator, como se diria em créditos gringos – comigo), da Letícia Friedrich (produtora executiva dos meus filmes há seis anos), Ana Luiza Pereira (responsável pelo som dos meus filmes há mais de dez anos), Stephanie Romano (assistente de produção de arte e que acompanha cada frame individualmente, escaneando e pintando). Está sendo uma experiência para a vida toda; não só para este filme. O filme está mudando graças a elas e eu também.

Bizarros Peixes das Fossas Abissais

Que narrativa heroica podemos esperar de Bizarros Peixes das Fossas Abissais?

Uma tênue linha narrativa segue um paradigma de Joseph Campbell, segundo a qual a protagonista traça uma jornada heróica em busca de algo. No caso, a heroína percorre múltiplos e distintos locais, desde a Baixada Fluminense até a Sérvia e as fossas abissais do título, para encontrar partes de um misterioso mapa. Todavia, essa jornada funciona apenas para possibilitar bizarras situações de humor nonsense durante todo o filme, envolvendo um trio. Nele, temos uma mulher cuja região glútea se metamorfoseia em um primata ao pronunciar a frase “Minha Bunda É Um Gorila”. Temos ainda uma tartaruga com transtorno obsessivo-compulsivo e há uma nuvem com incontinência pluviométrica (e que tem vergonha de chover na frente dos outros).

A animação 2D tradicional é utilizada seguindo a técnica chamada de full animation, onde todo o personagem se move e não apenas partes dele: se ele corre, todo o personagem é redesenhado para movimentar os braços e pernas e também os cabelos e roupas, criando um movimento mais fluido essencial para as – muitas – cenas de ação e de luta deste que é um filme de super-heroína, mas simultaneamente de humor exagerado. Uma comédia estilizada de super-heróis bizarros. Não é direcionado ao público infantil, mas paradoxalmente é sobre uma família. Uma família esdrúxula e desarmónica, mas uma família unida e leal.


Bizarros Peixes das Fossas Abissais

Que cenário podemos esperar para a animação nacional em 2019?

O Brasil lançou aproximadamente 50 longas de animação nos últimos 102 anos de produção animada nacional. Graças aos mecanismos nacionais de fomento do Fundo Setorial do Audiovisual e BNDES – entre muitos outros regionais – a última década foi responsável pelo admirável crescimento em progressão geométrica da quantidade e qualidade destes filmes. Longas-metragens de animação infantis e adultos, em múltiplas técnicas (2D tradicional, 2D digital, 3D, stop motion) e realizados em distintas regiões do país, fomentando a indústria e gerando trabalho para milhares de profissionais da área e reconhecimento no exterior.

Atualmente há duas dúzias de longas de animação sendo produzidos no Brasil. Este número é inédito e lutamos para que não seja interrompido. Um prestigioso exemplo são alguns dos recém-finalizados ou quase prontos, que vislumbro como potencialmente as melhores longas de animação da História do nosso país: Cidade dos Piratas, animação 2D de Otto Guerra (a partir das tiras da Laerte) e Bob Cuspe, stop motion de Cesar Cabral (a partir do trabalho de comics do Angeli). Estou ansioso para ver ambos, assim como aguardo ávido pelas longas em stop motion Traça Teca (em produção no interior de SP pela Rocambole) e em computação gráfica Fujiwara Manchester. Aguardo todos auspiciosamente.

Uma longa animada leva em média quatro anos para ser produzido e envolve de centenas a milhares de profissionais durante este período. Estes são projetos que envolvem diferentes gerações, formadas ecleticamente – alguns academicamente e outros de modo autodidata. Serão filmes prodigiosos.

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