Sexta-feira, 26 Abril

Welket Bungué: “o meu sonho sempre foi ser ator. A realização surgiu por necessidade artística, ética e política”

Welket Bungué é o protagonista de "Berlin Alexanderplatz", filme que vai abrir a KINO - Mostra de Cinema de Expressão Alemã

Nascido na Guiné-Bissau, Welket Bungué veio para Portugal em 1991. Estudou teatro, participou em séries na TV (Equador; Morangos com Açucar) e deu nas vistas com um punhado de obras que fizeram o circuito dos Festivais. Em 2017, a sua presença em “Joaquim” abriu-lhe as portas para o cinema europeu, brilhando intensamente em “Berlin Alexanderplatz“, filme de Burhan Qurbani que estreou na Berlinale e valeu a Welket a nomeação a melhor ator nos prémios alemães de cinema.

Sempre proativo e politicamente engajado no seu trabalho, à frente e atrás das câmaras, Welket tem perfeita consciência que no universo da cultura portuguesa é um dos raros exemplos da presença de corpos negros nos ecrãs.

Atualmente na Guiné-Bissau, onde estreou a sua mais recente curta-metragem, “Cacheu Cuntum”, Welket acedeu a falar connosco via Zoom, explicando como se deu a colaboração com Burhan Qurbani em “Berlin Alexanderplatz“. Pelo meio, falámos ainda da sua carreira de ator, realizador e ativista para que o panorama da cultura portuguesa mude e comece a ser um reflexo da diversidade que existe na sociedade.

Estive em dezembro com Burhan Qurbani no Festival do Cairo e ele descreveu-te como uma força da natureza. Como é que foi o processo de entrada neste filme? Houve um casting?

A primeira vez que fui contactado por ele foi em 2017, em abril, depois de ter ido à Berlinale com o filme “Joaquim”. Eles já andavam à procura do ator há dois anos. A direção de casting já me tinha visto noutros filmes, mas não sabiam como entrar em contacto comigo. Depois de me verem na Berlinale, foram à minha procura e conseguiram chegar até mim. Este contacto foi em abril e depois mandam um e-mail a dizer que estavam interessados em que fizesse um casting para eles. Estava no Brasil e disseram para fazer uma “self tape”. Fiz e a grande verdade é que na época nem sabia dizer pão. Mesmo sendo a minha companheira alemã, eu não tinha a prática [de falar alemão]. Aliás, em Portugal não temos familiaridade com essa língua. Fiz o que pude e depois fiz também em inglês. Foi essa versão que nos deixou esperançosos. O facto da minha companheira ser alemã, vim a saber que também influiu positivamente na minha escolha, pois sabiam que se tivesse de aprender alemão, isso seria uma mais valia. 

Quando regressei à Europa, em 2017, e numa ocasião de visita a Berlim, levaram-me a conhecer o Burhan pessoalmente e fizemos um casting presencialmente. Aí conheci o Albrecht Schuch e a Jella Haase – com eles fazemos o trio de protagonistas – e ficaram agradados com o que viram. Voltei para Portugal, ainda nesse final de ano, e o Burhan disse que gostaram de mim e que íamos avançar. A partir daí tive três meses de formação de alemão com uma professora do Goethe-Institut. Para aí em março de 2018, vou para a Alemanha e tenho dois meses de alemão intensivo onde foi priorizado o texto. Depois filmámos em maio de 2018 e novamente em dezembro do mesmo ano, na África do Sul. Em 2019 foi editado e estreou em 2020.

Berlin Alexanderplatz

Uma das coisas que o Burhan também contou-me é que tu ensinaste-lhe muitas coisas sobre a personagem que interpretas. Muitas coisas que ele nem sabia sobre ela.

Sabes como funciona, metodologicamente, o cinema contemporâneo. Se tens um ator que mais ou menos se aproxima do background da personagem, interpretas aquilo que era a ficção no início e preferes embeber-te naquilo que é a experiência real do ator para definir melhor essa mesma personagem. Como descendente de guineenses, e toda a cultura e misticismos associados à nossa espiritualidade, foi essencial para este filme essa experiência, sobretudo no que diz respeito ao ritual de fortalecimento e proteção que tem a ver com a travessia deste individuo de África para entrar em território europeu.

Esses conceitos sólidos que passei para ele, este ritual de passagem, do enfrentamento da fera, esta aquisição do amuleto de proteção, tudo isso dialogou muito bem com o imaginário do Burhan. E encontrava-se muito bem com aquilo que eram as passagens do Francis quando estava em África, antes de chegar à Europa. O Burhan “comprou” essas propostas e, ao mesmo tempo, era importante percebermos como é que uma personagem sem família, num território que desconhece, podia sentir-se centrado e convicto naquilo que tinham sido as motivações que o levaram a fazer a travessia com a sua companheira. E mesmo perdendo a companheira, ele continua afincadamente a tentar cumprir o propósito da sua vinda para a Europa.

Isto também é importante numa esfera mais simbólica-religiosa-espiritual. O elemento religioso-católico está também muito presente no filme e acho que era importante para nós mostrar o desenraizamento da personagem face a uma estrutura tipicamente europeia, evidenciando as crenças do Francis. Esse foi um dos pontos que trabalhámos (…) A personagem está aprisionada neste Ananque que é o filme. Nós vemo-lo a tentar fazer uma coisa, mas que não consegue cumprir. No limite, em termos de livre-arbítrio, para nós, artistas, precisamos de dissecar as ações da personagem e perceber se ele de facto pode fazer aquilo ou não. Deixávamos assim a moralidade fílmica falar por si, em vez de sermos nós, de alguma maneira, a mais uma vez vincar o estereótipo do migrante, do refugiado, do que procura asilo. Daquele que não tem nem esperança, nem culpa, e está naquela condição.

Vejo a personagem como alguém que efetivamente quer ser bom, mas não é. É um tipo que tem princípios éticos, tendo em conta a realidade de onde vem. Nós conseguimos ver que é uma alma boa, mas humanamente falando não é bonzinho nenhum. Ele consegue andar a par e passo com o Reinhold e não acredito que seja este que o faz perder-se. O Francis perde-se porque é ambicioso e não consegue mostrar uma gratidão profunda a este fenómeno incrível que é a existência humana. Acha que não basta existir, mas tem de impor a sua vontade. 

Berlin Alexanderplatz

E ficaste satisfeito com o resultado final, não só do filme, mas da tua interpretação? Foste nomeado aos prémios do cinema alemão. Isso trouxe-te uma nova visibilidade em termos alemães, mas também europeus e até portugueses?

Fiquei, sobretudo, satisfeito com o resultado final do filme, mas também com o meu trabalho. Ando nisto há relativamente muito tempo. Se calhar, para alguns, 15 anos é como se fossem 5 anos, mas para mim estes 15 anos é como se fossem 30 anos por causa do esforço que tive de depositar. O engajamento artístico-cidadão que tenho de ter para que possa reclamar as oportunidades justas que acredito que existiram, e que outros – com o mesmo perfil que eu – merecem. Este retorno foi muito gratificante e impulsionador para que eu e outros, que podem estar na eminência de desistirem, percebam que existe um mundo globalizado e as histórias são cada vez mais transversais. É inevitável que a gente não seja afetado de uma maneira ou outra por essas histórias. O caminho é continuarmos a nossa formação humana, mas também profissional, de maneira a não depender apenas de uma indústria ou de um mercado de trabalho. É isso que tenho aprendido e é isso que tenho investido de há muito tempo para cá. 

E depois desta interpretação, tiveste mais propostas de atuar? Da Alemanha, de outros sítios?

Tive algumas da Alemanha, mas ainda não estava convencido com isso. O “Berlin Alexanderplatz” levou-me ao país e à cultura, mas preciso de mais tempo para sentir-me como um peixe dentro de água, naquilo que toca à atuação. Projetos falados em inglês têm sido mais, mas aí também faço castings e a competitividade é outra.

Maior, não é?

Esses projetos conseguem ter elencos com talentos internacionais que sabem falar inglês. Na Alemanha é um pouco mais restrito. Por outro lado, ainda durante a Berlinale tive um convite direto de uma realizadora belga, a Dorothée Van Den Berghe, com quem vou trabalhar agora numa longa-metragem em fevereiro. Tenho uma proposta de ir ao EUA filmar com um diretor importante – falta só assinar. Enquanto isso, há outras coisas na calha. Projetos meus, filmes que devo finalizar este ano. Inclusivamente, espero filmar o último filme da trilogia “Sonhos de Cor”, que é composta por “Bastien”  (2016), “Arriaga” (2019), e este último que se chama “Lesbi & Prima“. Já temos financiamento para isso. Ainda precisamos de mais algum. Para ser honesto, devo fazê-lo entre abril e maio. Agora estou aqui na Guiné-Bissau. Tivemos aqui um encontro de cinema e entretanto filmei aqui…

Cacheu Cuntum

…o “Cacheu Cuntum”

Exato. O “Cacheu Cuntum” é um documentário experimental filmado com um dispositivo móvel. É uma curta com cerca de 7 minutos. É montado com o relato de um dia num museu, o Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro de Cacheu, em contraste com imagens de Bissau que fiz durante a minha estadia. Imagens essas que mostram uma Bissau da atualidade, onde temos muitos jovens, ou a saírem das sessões de reza, na mesquita por exemplo, ou a jogarem futebol à beira da estrada ou num bairro mesmo, ou a irem para a escola, ou uma criança que fotografa outro grupo de crianças. Essa é para mim a imagem mais climática do filme.

O filme procura colocar em contradição, se assim quisermos dizer, o arquivo ou memória de um período bastante invisível aqui do ponto de vista da consciência. Muito daquilo que é a história da Guiné-Bissau está enquadrada naquilo que foi o período colonial e gostaria que não fosse assim. Gostaria que tivéssemos um vislumbre de uma Guiné-Bissau do amanhã com mais esperança. Ao mesmo tempo, gostaria que o filme, ao comunicar com a audiência, despoletasse essa provocação que é o redescobrir da história da Guiné-Bissau escravocrata. O filme, como é relativamente curto, invoca a reflexão através da provocação. Mas provocando algo menos ríspido, mas mais esperançoso. Quando vim para cá, em 2019, foram 28 anos depois de ter saído daqui (1991). Essas imagens dos miúdos são a forma como vi a Guiné-Bissau ao vivo 28 anos depois de sair. O que sabia da Guiné era o que os Media mostravam. Esse é o simbolismo que o filme abarca. 

Fizemos aqui a antestreia e agora vou ver festivais do género documental, experimental, de curtas ou filmes feitos com dispositivo móveis para ele ser exibido.

Uma das coisas interessantes na tua carreira é que tens já um leque variadíssimo de filmes realizados. Como és ator e realizador, alguma das áreas interessa-te mais?

O meu sonho sempre foi ser ator. A realização surge por necessidade artística, ética e política. Quase como um dever ético, pois em Portugal, havendo a falta de representatividade de corpos negros na ficção nacional, e sobretudo no cinema, precisava contar as minhas histórias e sobretudo contrabalançar essa lacuna com elencos constituídos maioritariamente por artistas negros e negras.

Depois, uma vez que começo a viajar e essa necessidade de contar histórias de ficção vai-se adensando, começo a desenvolver um tipo de filmografia que chamo de cinema de autorrepresentação, o qual conta sobretudo a experiência da minha pessoa naqueles lugares. A regra central é que nunca me posso dissociar daquilo que estou a filmar, pois diretamente estou sempre implicado naquilo que está a ser contado. Ou pelo local, ou pela minha presença nas imagens, por fazer parte da comunidade afectada, ou porque são temáticas que influenciam a vida social, cultural e política.. É nesta lógica de pensamento que consigo fazer filmes como “Eu Não Sou Pilatus”, “Intervenção Jah” no Brasil, “Bustagate” e, muito recentemente, o “Mudança” com a Joacine Katar Moreira. Acredito que neste momento começa a ser cada vez mais difícil discernir o que é o Welket ator e o Welket realizador. Ambos influenciam-se. 

Para além disso, sei que como ator vou buscar o meu ganha-pão e, graças a isso, consigo fazer os filmes de forma independente para que eles tenham a atenção da imprensa ou que eventualmente a classe académica veja neles um potencial estético-artístico, para que possam debruçar-se sobre eles e refletir. É o que tem acontecido agora e tem sido muito bom. 

Numa entrevista à Euronews disseste uma coisa muito interessante em relação aos nossos produtores. Que eles tinham de ver que  Portugal “é um país colorido, riquíssimo do ponto de vista cultural, e que eles não podem continuar a impor estrategicamente um ‘statement’ daquilo que é cultura”. Isto é uma mensagem específica para alguém?

É para todos aqueles que são lobistas e amiguistas. O que aconteceu com o “Soul” – filme da Disney com personagens maioritariamente negras que teve uma dobragem por atores brancos – foi gritante. Mas já antes disso houve outras produções em que as coisas não estavam equilibradas. Quando falo nisto, não falo só de cinema, mas de televisão, sobretudo por ser o grande difusor de massas. Depois, vamos ver o teatro, por exemplo. Qual é que é a paisagem humana do teatro? Quem é que está à frente das companhias de teatro?

No fundo, é assim com toda a cultura em Portugal. Quem está por trás de tudo. Não existe representatividade. Ainda vigora a velha-guarda…

Exatamente. É disso que estou a falar. 

Sim, até recentemente tivemos um mostrar de duas facções no parlamento na discussão da cultura e taxar as plataformas de streaming. (risos)

É disso tudo que estou a falar (risos). Estive nos prémios Sophia e subiram ao palco os que foram homenageados e os que levaram os troféus para casa. Está tudo explicado. É disto que falo. Faço parte da Academia e ainda bem que faço, porque é-me inevitável assumir o meu lugar como sendo um mínimo percentual de representatividade ali. 

O que é que é aborrecido é que chamam miscigenação a isto, mas isso não é visível. Ou seja, não reflete a sociedade portuguesa. Nós estamos todos juntos e misturados. Saímos à rua e vemos. O que digo que essa gente [produtores] está a fazer é não refletir a nossa diversidade multi-étnica e cultural. E pergunto-me: então nós, quando fazemos o bem inevitavelmente estamos a celebrar o melhor de nós e estamos a refletir isso sobre a nossa cultura e a nossa nação. O que exijo é que haja o inverso. Digo isto porque existe uma responsabilidade inerente.

Welket Bungué

E falando da Academia, estiveste agora na escolha do candidato português aos Oscars. Achas que o “Vitalina Varela” é um bom candidato?

É o melhor de todos, incontornavelmente. (risos) Quando digo isto, não é preciso dizer mais nada. 

Gostavas de trabalhar um dia com o Pedro Costa?

Claro. Não o conheço pessoalmente, mas tem a ver com o foco [do seu trabalho], quase como uma espécie de género fílmico. E ainda bem que é feito por um português e em Portugal, com a diversidade étnico-cultural que nós temos. Há algum filme português neste ano ou nestes anos que consiga incorporar-se nestas qualidades? Dificilmente. Nós temos filmes muito bons, mas ao nível internacional, para mostrarmos genuinamente como são produzidos, este é o filme. E se ele não for agora, duvido que volte a ter oportunidade de ir. E com isto não estou a descurar as outras produções, pois nestes últimos cinco anos temos feito bons filmes. Nós temos produzido coisas boas, só que esta é a nossa lacuna. Temos de misturar muito mais.

Em relação ao “Soul”, achas que a petição e estes protestos vão dar em alguma coisa?

Mais importante que dar em alguma coisa é que tenha havido um manifesto de vozes indignadas e que estão atentas. E não são só pessoas do meio. São entusiastas, são portugueses. Eles querem ver o país bem na fotografia. E nós não estivemos bem. E os dinamarqueses cometeram o mesmo erro crasso.

Disse e continuo a dizer: estava em Berlim a 6 de junho quando houve a marcha do Black Lives Matter no centro de Lisboa. Foi um momento épico. Estava longe, emocionei-me e disse que este era o país que sempre vi. Todas as vezes que ia para as ruas, quando estive no Brasil, ou quando fui para Londres e pude conviver com a Diáspora afro-portuguesa, foi aquilo que vi. Não sei quando é que voltamos a ter aquela imagem nas avenidas de Lisboa. Quem não viu aquilo, deveria ver o que aconteceu no dia 6 de junho de 2020. Era esta imagem que gostaria de fechar os olhos e ver refletida em todos os lugares do país. Não que seja motivada pela perda de alguém, cuja morte tornou-se um fenómeno global [George Floyd], mas porque todas as pessoas, movidas pela solidariedade e compaixão, unem-se para caminharem ali e elevar as suas vozes. Da mesma maneira que espero que isso agora aconteça em relação à democracia que precisa ser salvaguardada. E nós temos aí umas eleições presidenciais que realmente exigem que façamos um exercício cívico de voto, pois há pessoas que estão a tirar o proveito indevido daquilo que foi o esforço para firmar a democracia em Portugal. Temos de estar unidos.

Última pergunta: tens algum projeto na realização de longas-metragens?

Tenho um guião que entreguei há dois anos a alguém em Portugal. Se isso não acontecer com essa pessoa este ano, espero que para o ano seja eu mesmo a produzir a longa-metragem. Enquanto isso não acontece, estou a captar fundos para terminar a edição da minha primeira longa-metragem, um documentário de ficção. Já tem nome, chama-se “Bissalanca” e foi filmado enquanto estava na Guiné-Bissau em 2019. Preciso de financiamento para a edição de imagem e som. 

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