Terça-feira, 30 Abril

Marco Bellocchio e “O Rapto” de Edgardo Mortara

"O Rapto" chega aos cinemas a 18 abril

Nascido em Bobbio, no norte da Itália, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Marco Bellocchio afastou-se do neorrealismo logo na sua primeira longa-metragem, “Fists in the Pocket” (I pugni in tasca, 1965), assinando posteriormente filmes como “A Leap in the Dark” (Salto no Vazio, 1980), “Henrique IV” (Enrico IV, 1984),  “The Prince of Hombourg” (Il principe di Homburg, 1997); “The Nanny” (La Balia, 1999), e “L’ora di religione – Il sorriso di mia madre, 2000

Cineasta político, comprometido e antifascista, o italiano questiona constantemente a violência das instituições, particularmente a família no seu primeiro filme e em “China Is Near” (“La Cina è vicina“, 1967); o exército com “Victory March” (Marcia trionfale, 1976); a saúde no documentário “Fit to Be Untied” (Matti da slegare, 1974): e a igreja em “In the Name of the Father” (“Nel nome del padre“, 1971) e “My Mother’s Smile” (“L’ora di religione: il sorriso di mia madre“, 2002).

No seu mais recente filme, “Rapito” (“O Rapto“), o realizador volta a colocar o foco na igreja, ao contar a história de Edgardo Mortara, um menino judeu que no século XIX é sequestrado para ser criado como cristão, o que desencadeia uma batalha política e protestos generalizados, quer em Itália como noutros países.

Foi em Cannes, onde o filme teve a sua estreia, que nos sentámos à mesa com o cineasta e falámos do seu mais recente projeto.

Apesar de ser uma história do século XIX, existe algo de muito contemporâneo nela, ou seja, o nascimento de um rumor e como isso provoca muitos danos…

Fico feliz que vejam ligações à contemporaneidade, mas a minha intenção era contar a história deste pequeno rapaz judeu que foi raptado pelo Papa e batizado. O cinema é um trabalho coletivo, por isso é normal que cada uma das pessoas que trabalha nele contribua com a sua sensibilidade, que claro está ligada ao tempo que vivemos. Com este misto de elementos espero atrair o público. E isso tem a ver com a atualidade e podemos fazer paralelos políticos, como por exemplo o rapto recente de crianças ucranianas para a Rússia. Mas no meu filme, a religião é a responsável.

Eram muito frequentes estes “raptos” por parte da Igreja Católica?

Eram muito comuns. Começaram no início do século XVI e só terminaram em 1858, depois do caso do Edgardo. E tudo partia de um princípio muito básico: depois de seres batizado, pertences à igreja e tens de ser educado como um católico. Claro que houve sempre muitos protestos contra isto, mas o poder da Igreja nestes tempos era imenso. Eu fui educado como católico. Ensinaram-me as orações e os rituais como um católico ativo. A questão do Edgardo teve mais visibilidade e provocou mais celeuma, especialmente junto da comunidade judia, pois coincidiu com o final dos Estados Pontifícios. Houve uma revolta enorme em países como França, Rússia e Áustria. Todos criticaram o Papa. Até mesmo Napoleão III, que foi sempre um grande protetor da igreja, pediu ao sumo pontífice que devolvesse a criança à família. O Papa respondeu que não podia, pois era inconcebível para a Igreja Católica, depois de batizar uma criança, cede-la de volta a uma família não católica. Seria a violação de um dos sacramentos.

Aos 84 anos, Marco Bellocchio regressa às salas com “O Rapto”

E mesmo com esse caso, o Papa Pio IX  foi beatificado pela Igreja…

Sim, não foi só absurdo, mas visto como um insulto para a comunidade judaica. Duvido que possa ainda ser considerado santo, pois o papa que temos atualmente é muito mais cauteloso e observador. Além disso, para seres considerado santo existem regras em relação a fazer milagres, coisa que ele não fez. É verdade que a Igreja Católica já pediu desculpas por muita coisa à comunidade judaica, mas nunca por este caso. Como sabemos, durante séculos os judeus foram acusados da morte de Jesus. 

Felizmente, a Igreja Católica tem perdido poder e o Papa atual, Francisco, tem tido uma mente muito mais aberta que tem ajudado a que muitos dos crentes se mantenham com ligação à Igreja Católica. Mas a verdade é que as capelas e igrejas estão cada vez mais vazias de crentes, embora existam mais turistas. Até o número de batismos e casamentos tem diminuído.

O que procurava no ator que interpreta o papel do Edgardo ?

Quando procurei pela criança que faz de Edgardo Mortara, o Enea Sala, não queria jovens atores com experiência em séries televisivas  ou na publicidade. E não queria porque haveria nelas uma artificialidade que queria evitar. Queria um miúdo capaz de expressar o sofrimento, o sentimento de perda, uma grande dor. Quando descobri o Enea, fiquei surpreendido em saber que ele nunca tinha entrado numa igreja. Claro que tinha conhecimentos sobre elas e a religião, mas não praticava. Não foi sequer batizado. Isto é um sinal dos tempos. No meu tempo era inconcebível uma criança não ter qualquer ligação à Igreja Católica. Fui batizado, não entro numa igreja há 40 anos, mas sou católico para sempre.

E no filme, é como o inquisidor diz: depois de uma criança ser batizada é irreversível e não pode ser educada por alguém que não é católica. Depois do batizado és um católico para sempre. No passado, a recusa disso trazia consequências penais. Não acreditar em Deus era contra a lei. Se pensarmos na acusação contra os judeus de matar Cristo, está apenas se dissipou depois da 2ª Guerra Mundial.

Como foi o trabalho no guião com a Susanna Nicchiarelli?

Trabalhei muito bem com a Susanna, a qual, como sabem, é também cineasta. Escrevemos o guião juntos, passo a passo. Antes deste filme, ela fez um sobre a Santa Clara de Assis (1194-1253) e ficou muito impressionada com a história do Edgardo Mortara. Creio que ela é como eu: não somos ateus, mas temos uma abordagem muito secular a estes temas. Ela trouxe muito entusiasmo e paixão para o trabalho, o que é muito interessante. Nestas colaborações, o que se destaca mais frequentemente é a vertente técnica.

Pode falar um pouco do trabalho visual do filme? 

É inspirada na minha relação com a pintura italiana, mas também com o expressionismo francês. Foi também muito interessante, em termos arquitetónicos, recriar algo que já não existe. E foi muito importante encontrar a paleta de cores e a iluminação certas para usar no filme, especialmente porque tínhamos muitas cenas noturnas. Como disse, fundamentalmente a minha inspiração foram os quadros do realismo italiano do século XIX. E não foi apenas para mim, mas também para a direção artística e o guarda-roupa. E era fundamental a escolha dos locais exatos para as filmagens, pois esses espaços poderiam expressar as emoções envolvidas em cena. Era muito importante manter os símbolos da presença e força papal da época.

Tudo foi reconstruído, embora tenhamos sempre pensado no século XIX e no seu mobiliário interior. Também usamos muitos efeitos visuais. Trabalhamos bastante no pós-produção, como se vê na imagem que mostra a linha de horizonte de Roma. Em alguns espaços onde filmámos, proibiram-nos de acender as luzes, o que nos obrigou a muito trabalho depois das filmagens. Foi muito complexo tentar transmitir ao espectador a sensação de estar em Roma no século XIX.

Notícias