Se realizadores como Cristi Puiu e Cristian Mungiu consolidaram a Primavera Romena, a partir a “A Morte do Sr. Lazarescu” (2005), como o mais potente movimento (ainda que circunscrito a um só país) cinematográfico das últimas décadas, realizadores como Kornél Mundruczó (“Deus Branco“), László Nemes (“O Filho de Saul”) e Ildikó Enyedi (“Corpo e Alma”) colheram os primeiros frutos do que esboçou ser um Outono Húngaro. O termo foi esboçado com a vitória de Ildikó na Berlinale 2017 e retomado em 2018, com a passagem de Nemes por Veneza, com “Anoitecer”. Acreditou-se, ali, que o legado de Béla Tarr – de fazer da Hungria uma terra capaz de exportar espetáculos de requinte visual, de experimentação narrativa e de alta voltagem filosófica – germinaria um cinema dos mais exuberantes.

As sementes foram distribuídas nos ecrãs, com respeito à tradição de Miklós Jancsó, Márta Mészáros, (em menor grau de conexão), István Szabó e do próprio Béla Tarr, e as primeira colheita delas derivadas começa a ser servida nesta Berlinale, como se viu na disputa pelo Urso de Ouro com “Természetes Fény”, doído drama bélico assinado por Dénes Nagy, a ser lançado mundialmente como “Natural Light”. Há tempos, talvez desde o “Na Neblina” (2012), de Sergey Loznitsa, que não se via uma incursão tão visceral à frente de batalha da 2ª Guerra Mundial, mais preocupada em mapear o estado de coisas daquele instante da História do que em cartografar horrores. Não é um filme sobre o Holocausto, é um filme sobre a vivência do combate, do ponto de vista do estrangeirismo, da falta de pertença.

Mais conhecido pelo seu trabalho como documentarista, Dénes Nagy estreia-se na ficção levando das suas experiências com as narrativas do Real um olhar geográfico para entender o quanto o espaço afeta a conjugação do verbo “viver” em contextos de tensão. Municiado de um dado histórico – em 1943, húngaros foram convocados para lutar na URSS ocupada -, ele mergulha nas fossas do Império Soviético, num inverno de plena aspereza, para tentar mapear, de um ponto de vista distanciado, o que (e como) se viveu ali.

Importa menos a jornada que narra que o ambiente físico e, à certa medida, moral, onde se passa, para possibilitar à plateia uma chance rara de espatifar a imagem da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas hoje cristalizadas no nosso imaginário. O princípio da estranheza – e da incerteza – que torna o filme vivo – em meio à estonteante fotografia de Tamás Dobos – é a figura do combatentes István Semetka, vivido por Ferenc Szabó, numa atuação feérica.

É muito raro, mesmo em festivais do porte da Berlinale, vermos filmes com personagens capazes de transcender os debates morais propostos pelos realizadores. Em geral, no dito “filme de festival”, os protagonistas são meras ilustrações para as discussões travadas, sem uma tridimensionalização que explore as suas psiques. Com Nagy, o caso é outro: a mente de István é dissecada diante de nós, mesmo em momentos de silêncio monástico. Os seus olhares angustiados e as suas miradas curiosas, por vezes capazes de encobrir a sua ambição em prosperar na farda, registam a brutalidade à sua volta, procurando entender como agir.

Trememos com ele naquele áspero frio, duvidamos com ele da ofensiva alemã, duvidamos com ele de uma possível regeneração da glória estalinista e, ao seu lado, percebemos o quanto a solidão pode ser dolorosa na língua do cinema, falada a partir de dialetos húngaros.  

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
natural-light-o-outono-das-personagens-visceraisTrememos com ele naquele áspero frio, duvidamos com ele da ofensiva alemã, duvidamos com ele de uma possível regeneração da glória estalinista e, ao seu lado, percebemos o quanto a solidão pode ser dolorosa na língua do cinema, falada a partir de dialetos húngaros.