Muitos daqueles que enfiam a carapuça às críticas constantes, repletas de ironia e sátira, que Avi Mograbi aplica no seu cinema documental, certamente o definem como um verdadeiro Schlemiel, um hipócrita e mais um da casta de cineastas israelitas que “gosta de morder a mão de quem o alimenta”. Mogabri pode até ser tudo isso, mas ao longo da sua carreira tem sido uma das vozes mais permanentes, sonantes e coerentes na sua crítica ao militarismo do estado de Israel e da ocupação ilegal  israelita dos territórios da Palestina.

Por cá, certamente a ala direita o designaria como o melhor exemplo possível da apelidada “esquerda caviar”. Filho de uma família abastada, é uma das vozes mais à esquerda num país que tal como os EUA tem uma difícil câmbio para a nossa realidade dessa definição, sendo particularmente um feroz crítico do partido de direita Likud, cujo o nome de Benjamin Netanyahu continua a ser o seu maior símbolo na atualidade e a quem dedicou o tremendo “How I Learned to Overcome My Fear” (1997).

The First 54 Years – An Abbreviated Manual for Military Occupation”, presente no Festival de Berlim na secção Fórum, é uma continuação natural da sua obra cinematográfica, onde – com o seu estilo e até arrogância burguesa assumida – traça um pequeno panorama da história de uma ocupação que passou largamente a escala da legalidade quando começou a erradicar das suas posses os palestinianos, e a relocalizar e preencher o espaço vago com sucessivos colonos judeus.

O estilo com que faz isto tudo é a sua característica: frente a frente com a câmara, muitas vezes de cigarro na mão, ele fornece-nos uma espécie de “workshop” sobre uma ocupação camuflada, entre o cinismo e a vilania, contada pelo próprio com recurso a imagens de arquivo e dezenas de testemunhos de soldados israelitas que nos últimos 54 anos participaram diretamente em ações em nome do seu estado, mas que muitas vezes foram movidas por ordens individuais e vendetas plenas de incoerência. Nenhum palestino testemunha pelas suas próprias palavras neste documentário o vivido por si nos últimos 54 anos, mas eles são sempre os visados das ordens que os homens que aparecem em cena relatam ao espectador.

Tudo é também construído com a gímnica natural, entre a forma de testemunhos de “cabeças-falantes”, mapas quase artesanais e registos de imagem que transformam este num objeto com a rugosidade de um programa jornalístico de televisão do passado, onde não falta o humor negro, o olhar e as palavras de desafio e provocador, que o transformam num dos nomes do cinema local cuja dissidência política com o poder instituído mais é visível e efervescente.

(Texto originalmente escrito durante o Berlinale)

Pontuação Geral
Jorge Pereira
the-first-54-years-um-pequeno-manual-da-ocupacao-da-palestinaObjeto com a rugosidade de um programa jornalístico de televisão do passado, onde a ironia a sátira e até a arrogância ensinam os passos da ocupação da Palestina por parte de Israel