Sábado, 4 Maio

Nadav Lapid: «A minha relação com a minha pátria é daqueles cães que mordem a mão de quem os alimenta»

2019 começou cheio de bons augúrios para o cinema de Israel, com um par de projetos de Amos Gitai para estrear (A Letter to a Friend in Gaza e A Tramway in Jerusalem), com o Oscar de curtas-metragens para Skin, de Guy Nativ, e com a conquista do Urso de Ouro da Berlinale por um realizador que ganha, filme a filme, o status de autor.  

Promessa de renovação narrativa para a seara do cinema de autor, com a sua reflexão contínua sobre a pertença e identidade, Nadav Lapid, um israelita de 43 anos, em atividade desde 2003, hoje vê a sua fama consolidar-se aos olhos da classe cinematográfica.

Ele saiu do 69º Festival de Berlim com um troféu disputado por Agnieszka Holland, François Ozon e Fatih Akin, entre outros cineastas de respeito, o que lhe dá prestígio, no mundo, mas também um fardo. Pelo menos no seu lar, a vitória dele em terras alemãs causou um rebuliço perturbador. Desde 16 de fevereiro, quando a sua conquista foi anunciada pelo júri presidido pela atriz francesa Juliette Binoche, encantada pelas reflexões de tom existencial feitas por ele no filme Synonyms, Lapid vem sendo tratado na sua pátria como uma celebridade. Mais do que isso: num país que produziu séries de enorme prestígio, ele transformou-se num parâmetro de excelência para a arte do guionismo, além de ser encarado como um transgressor das convenções culturais. 

 “Tenho uma estética que aborda os temas de modo frontal, direto ou, como eles dizem, cru. Não estou na maré das representações tradicionais, na trincheiras das imagens icónicas. Quero olhar o espaço sob uma perspectiva a partir da qual não costuma ser notado, porque o cinema é aquilo que mais se assemelha, na arte, à potência da vida, da existência, com a mímica de todos os nossos processos quotidianos. E as palavras são uma parte essencial da experiência de existir. Uma parte sensorial, o que dá uma dimensão física” disse Nadav por telefone ao C7nema. “Há críticos e cineastas que consideram a palavra um elemento da televisão, mas eu encaro as palavras pela essência delas, não apenas pela matéria: o som, as letras. Palavras são signos. As minhas palavras são reminiscências de Israel, elas conectam-me à terra de onde venho. Por isso, o meu protagonista carrega um dicionário como s sua ferramenta essencial, o seu instrumento de ligação com o mundo”.

Encarado como uma marca criativa desde 2011, quando ganhou o prémio especial do júri do Festival de Locarno com Policeman, Lapid conquistou os braços dos críticos quando Cannes rasgou-se em elogios para o seu The Kindergarten Teacher (2014), que foi refilmado nos EUA há um ano. Mas, agora, do Urso Dourado da Berlinale vem um trabalho ainda mais radical: Synonyms é o retrato de um imigrante israelita que procura um lar em Paris, às custas do apagar o passado, das suas raízes, da sua língua. “No meu país, a comoção pela vitória foi surpreendente. Parece que ganhei um Mundial de Futebol, não um prémio de cinema, pois passei a ser tratado como um herói nacional, o que é o pior adjetivo possível para alguém que fez um filme crítico a certas questões da sua cultura”, diz Nadav. “Acho que quando Israel for ao cinema e perceber o que eu fiz nesse filme, as reações vão mudar”

Em Synonyms, Yoav (Tom Mercier, numa atuação estonteante) é um jovem que chega a França cheio de sonhos e de aversões ao país que deixou para trás. Mas trocar uma nacionalidade pela outra é uma tarefa carregada de um ónus existencialista: ele tem que ir à embaixada muitas vezes, não consegue livrar-se da sua língua natal e vê-se cercado de sombras xenófobas. É o preço da pertença e da busca por um recomeço.  Na entrevista a seguir ao C7nema, o cineasta fala dos simbolismos políticos da cruzada de Yoav. 

Como é a França que você retrata em Synonyms? 

Evitei a representação do cinema francês clássico, as paisagens dos filmes, a França idílica. Às vezes, um estrangeiro que diz “ter-se encontrado” em Paris não age como se fosse um francês, mas como se fosse o próprio Napoleão. O entusiasmo frente ao que há de novo é grande e ele cega-te do que existe na realidade. A minha tentativa foi buscar alguma moderação e, como já disse, fugir da perspectiva cinematográfica romantizada de Paris. Há talvez algo de Jacques Tati, comediante cujo cinema adoro e que traz uma estranheza bem-humorada na sua forma física de se relacionar com esse espaço.    

O que Synonyms espelha do cinema israelita contemporâneo?  

O meu incómodo diante dessa expetativa de que nós, artistas, temos que agir como embaixadores dos nossos países. Odeio fazer esse papel, mas a vitória na Berlinale tem levado muita gente a olhar-me dessa forma, como um porta-voz de Israel. A minha relação com a minha pátria é daqueles cães que mordem a mão de quem os alimenta. Fiz, em França, um filme que, sim, pode ser chamado de israelita, pois trata do que é ser israelita. Tenho lá as minhas críticas, mas tenho a minha conexão de berço.     

O que existe de sacrifício na jornada de Yoav?  

O recomeço, no confronto da tradição. A busca por uma vida na qual o passado não seja um ónus. Abrir mão da sua língua materna é um sacrifício, que começa com o gaguejar de novas expressões, vai para o sussurro de novos verbetes. Isso, no ecrã, na imagem, dá para a linguagem verbal uma dimensão cinemática, que expresso a partir de enquadramentos, de movimentos da câmara. Na nossa língua natal, tudo sai automaticamente. Nas línguas que nós adotamos, cada palavra é pensada, para se adequar às imagens que desejamos transmitir. O cinema é uma língua, com códigos próprios. Quando expresso Israel nessa língua, a das imagens em movimento, alterno momentos de quietude com trechos barulhentos, de muita conversa. Às vezes, personagens como Yoav falam como metralhadores e, às vezes, refugiam-se no silêncio absoluto. É o processo da linguagem. 

Que tipo de herói é Yoav? 

O heroísmo dele vem no desejo de desafiar a sua cultura de berço. Mas é um super-herói. Esse é um conceito que me atrai: o do sujeito que transcende as limitações. Há um desprezo hoje pelo heroísmo, mas ele tem um valor estético singular. Yoav é um super-homem pelo facto de ser cheio de carisma, de dançar bem, de ser atraente, de ter virtudes heróicas. Ele é a encarnação da falta de pertença. É herói por encarar os padrões da cultura do seu país. O herói não é aquele que não erra: herói é aquele que tenta fazer o impossível, maculado pelas doenças do mundo.  

 Qual seriam os melhores sinónimos para “solidão” na cartilha do seu cinema?

 Desconexão, falta de entendimento. Personagens comoo Yoav são capazes de fazer longos monólogos e até de fazer espetáculos em público, mas não são hábeis para travar um diálogo com outra pessoa, sobretudo um diálogo afetivo.   

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