Nos grandes filmes exibidos no Festival de Roterdão e Gotemburgo, vindo diretamente de Veneza, é impossível não mencionar “La Nuit des rois” (Noite de Reis), projeto que transpira arte e entretenimento e que poderia enriquecer qualquer plataforma global de streaming, além de encher os grandes ecrãs com puro cinema através de um coming-of-age alegórico prisional repleto de misticismo, tensão e política.

A chegada de um jovem (Bakary Koné) à prisão de La Maca, nas profundezas da floresta fora da cidade de Abidjan, na Costa do Marfim, é seguida por uma série de eventos onde a liderança do presídio – controlado pelos prisioneiros – está em causa. O seu líder, o Dangoro, é Barba Negra (Steve Tientcheu, cheio de carisma), mas ele está doente e fisicamente demasiado fraco para reinar, afigurando-se Lass (Abdoul Karim Konaté) como um potencial substituto.

Mal o jovem chega, e de forma a manter-se no poder, Barba Negra designa-o como o contador de histórias, o Roman, que durante uma noite em que a Lua Vermelha se põe terá de cativar os prisioneiros e evitar uma guerra de transição de poder à força no presídio.

A prisão serve de metáfora de um país preso em questões identitárias, entre a sua história antes do colonialismo e após este. Não é à toa que entre as forças em conflito, o atual líder é confrontado por um rival que quer transformar os presos em clientes, libertando-os da posição de escravos que agora são. Este é um reflexo articulado do que os países africanos se tornaram após uma transição para independência em que os países colonizadores continuaram a ser a força dominante através da colocação de um par de figuras locais, meros fantoches, a prosseguirem a sua agenda colonial, como Ousmane Sembène narrou em vários dos seus trabalhos no Senegal.

Cabe assim ao jovem Roman, um pequeno criminoso apanhado numa das prisões mais perigosas do mundo, contar uma história que evite um massacre que se antevê depois da transição de poder. E escolhe contar o drama de Zama King, figura que atravessa a história do seu país (recente e antiga) e acaba sacrificado no meio dos conflitos internos.

Philippe Lacôte, que já tinha brilhado com “Run” em 2014, onde seguia a conflitualidade política e armada no território, executa aqui um trabalho cheio de vigor, fantasia, mas também uma realidade que transpira o mapa genético da história da nação e do continente africano. Recorrendo ao “contador de histórias”, o cineasta sai da esfera da prisão, mas corta essas sequências por outros palcos da Costa do Marfim com a própria encenação de momentos da história contada por Roman, efetuada pelos prisioneiros, captando imagens belíssimas entre a dança e o teatro, que se fundem para nos entregar um objeto de puro cinema sempre tenso e imprevisível.

No final, “La Nuit des rois” revela ser um tremendo filme cheio de potencial comercial e artístico que coloca Lacôte na lista dos cineastas africanos mais interessantes e conhecedores dos códigos do cinema. A sua entrega de um objeto cinemático entre o real e o místico é difícil de esquecer, e a presença num pequeno papel de Denis Lavant é apenas mais um pequeno detalhe enriquecedor de uma obra imperdível. 

(crítica originalmente escrita em março 2021)

Pontuação Geral
Jorge Pereira
la-nuit-des-rois-era-uma-vez-na-costa-do-marfimUm tremendo filme cheio de potencial comercial e artístico que coloca Lacôte na lista dos cineastas africanos mais interessantes e conhecedores dos códigos do cinema.