As comparações são inevitáveis com O Lobo de Wall Street. Não só porque ambas as obras retratam a crise imobiliária de 2008 como viragens na jornada das nossas protagonistas, mas porque também Ousadas e Golpistas deve muito aos tiques do chamado “chico-espertismo”, no qual Martin Scorsese concentra e muito ao longo da sua carreira. Trata-se de um fulgor derivado das portas escancaradas deixadas pela Nova Hollywood, um vaivém sarcástico com a indulgência das suas personagens que não deixa de ostentar um certo fascínio pela ilegalidade.

Scorsese deixou há muito de ser um cineasta a solo com a sua marca para tornar-se numa instituição, e não é por menos que esta obra de Lorene Scafaria (com produção de Adam McKay, que também tem demonstrado alguns truques desse mesmo “circo”) nos apresente como um ensaio distante da mera referência scorseseana, ao contrário, de por exemplo, Todd Phillips, prestes a estrear o seu Joker, que não esconde as suas fontes de alimentação nem a vénia ao seu mestre.

Com base num artigo da New York Magazine, da autoria de Jessica Pressler, Ousadas e Golpistas centra nos enredos e engenhos de um grupo de strippers que drogavam os seus clientes para depois extorquir todo o dinheiro que podiam. Eram tempos difíceis, como o filme faz questão de relembrar, e mesmo assim somos presenteados com o mais vulgar dos moralismos da mesma forma que esta história de sedução e extração é sob uma lente grossa uma espécie de Tudo Bons Rapazes no feminino. Obviamente que ao utilizar estas afirmações / comparações soa quase como um desprezo ao que Ousadas e Golpistas tem de mais formidável, a planificação de Scafaria em conjunto com a montagem de Kayla Emter (que já havia trabalhado com a realizadora em The Meddler, para além com James Gray em A Emigrante) que emergem uma espécie de saudação a este universo.

Basta olhar para duas sequências em particular: a chegada de Usher ao “cabaret”, onde o filme automaticamente se transforma num animado quadro onírico e o na da parelha formada por Jennifer Lopez e Constance Wu sob os tons escarlates da sala privada, em jeito de grandes planos e planos-detalhe (uma libertina lavagem de Une Femme Mariée, de Jean-Luc Godard). Dois exemplos que explicitam a versatilidade de Scafaria neste registo criminal, mas infelizmente é nas passagens pelo conto e reconto à Scorsese que a película não chega atingir a superfície do Sol. Ao invés disso é um Icarus que se conforma com o seu ambiente terra-a-terra, planando numa altitude confortável e segura.

Passando então para o lado mais subversivo, o facto de ser uma realizadora por detrás dos devaneios e desventuras deste bando de raparigas, colocam a obra em condições para dissecar a rés-rés impunidade das protagonistas graças (em certa parte) à masculinidade tóxica existente na sociedade moderna (a vergonha de admitir a “burla” e cair no estatuto de vitima, fez com que muitas das “presas” da gangue não denunciasse o ocorrido).

Ousadas e Golpistas é o resultado da diversificação das vozes nesta indústria, porém incentivadas pelas mesmas fábulas. E é pena (também) que mesmo a astúcia de Scafaria esteja no palco, à vista de todos, balanceando no varão, o filme se confunda com a sua estrela / produtora, Jennifer Lopez, naquele que é um dos papeis mais trabalhados da sua carreira (atenção, não deveremos cair nos exageros dos elogios replicados da imprensa norte-americana), e acima, dos mais físicos. Mas até nesse aspeto, Constance Wu sai a ganhar até porque ao contrário de Lopez consegue arrancar a sua personagem do seu previsível arquétipo.

Pontuação Geral
Hugo Gomes
hustlers-ousadas-e-golpistas-por-hugo-gomesConstance Wu e Jennifer Lopez são as cabeças de cartaz deste peepshow do crime.