Muito tímido, de poucas palavras, mas sempre sorridente, o animador Mamoru Hosoda é do tipo que prefere observar, deixar falar, sentir a temperatura do ambiente emitir impressões sobre o mundo, até porque, a sua visão, quase sempre é mediada por uma reflexão que passa por uma inquietação acerca do disfarce, da nossa necessidade de jogar com as aparências, de buscar máscaras para ocultar os nossos desejos e frustrações.

Tem sido assim desde “The Boy and The Beast” (2015), algo descrito como uma aventura de pura ação que, no fundo, desnuda uma investigação freudiana sobre adereços que usamos no carnaval do amadurecimento, a fim de esconder as espinhas das nossas vergonhas. Há quatro anos, essa estética recheada de psicanálise, que ele encobre sob uma parafernália tecnológica exuberante, levou-o a um apogeu em Cannes, com “Mirai”. Na Quinzena dos Realizadores de 2018, ele foi apresentar aquele desenho animado sobre filhos que viajavam no Tempo (dentro da própria cabeça) e, ao pisar na Croisette, cumprimentava os espectadores que enfrentaram quase uma hora de fila, fazendo uma pergunta: “Você tinha quantos anos quando começou a ver Digimon?”. Era um subterfúgio para a sua própria timidez. Citar a série de êxito comercial de TV que o catapultou ao estrelato abriu veredas de segurança para que pudesse controlar o ímpeto dos seus fãs. Esse mesmo “dispositivo de segurança” afetivo foi repetido em Cannes, em 2021, quando exibiu “Belle”, que chega agora a Portugal, após uma elogiada passagem pelo Festival de Locarno, na Piazza Grande, onde foi ovacionado. É, como sempre, uma fábula. E é, como de costume, um debate sobre a arte de enganar.

A protagonista aqui chama-se Suzu Naito e é uma estudante de 17 anos que vive na zona rural Kōchi, num Japão que transpira solidão pelos poros da sua natureza insular. Quando era jovem, a moça era próxima da mãe, que apoiava o seu apreço por cantar e escrever canções, num sonho de se tornar compositora e estrela da música pop. No entanto, um dia, Suzu testemunhou a sua mãe a resgatar uma criança de um rio alagado, ao custo da própria vida, provando o fel do luto. A experiência traumática fez com que Suzu se ressentisse com a mãe por “abandoná-la” em prol do um filho de um estranho, tornando-se incapaz de cantar. O evento levou-a a se distanciar do pai, apesar das tentativas deste de se aproximar dela. Em Hosoda, os pais estão sempre dispostos a tentar e as mães são sempre o signo do etéreo, do ausente.

Nesta nova longa-metragem, Susu está alienada da maioria dos seus colegas, com exceção de um amigo de infância, Shinobu Hisatake, por quem tem uma queda afetiva; a popular Ruka Watanabe; o colega Shinjiro Chikami, apelidado de Kamishin; e o seu genial melhor amigo Hiroka Betsuyaku. Por sugestão de Hiro, Suzu aproxima-se do popular mundo virtual conhecido como “U” e, uma vez lá, cria um lindo avatar com sardas que chama de “Bell”, a tradução inglesa do significado do seu próprio nome. Ao entrar no U, Suzu vê-se capaz de cantar como costumava, soltando a voz qual um rouxinol. A aparência de Bell é inicialmente criticada devido às sardas, num sinal da crueldade adolescente. Mas depois de fazer várias aparições, cantarolando com a ajuda de Hiro, que se nomeou gerente e produtora de Bell, logo torna-se um grande fenómeno. Seguindo a sua popularidade, as pessoas começam a referir-se a ela como “Belle“, que significa “bela” em francês. Pouco a pouco, a menina vira sensação, mas recebe a visita de uma criatura que vai clamar pelo seu humanismo perdido, deflagrando uma dimensão existencial.

Enquanto trabalhava no projeto, a partir do Studio Chizu, Hosoda teve a ajuda do veterano animador da Disney e designer de personagens, Jin Kim, além de Michael Camacho para confeccionar o universo de U. Inicialmente, o realizador idealizou “Belle” para ser um musical, mas considerou a ideia difícil, uma vez que o Japão não é um especialista no género. Existe, um investimento pesado em canções nesta longa-metragem, mas o foco é maior na sua natureza melodramática e na sua roupagem fantástica.

A direção de arte é de uma excelência notável. O argumento, entretanto, não tem a mesma fluidez dos filmes anteriores, talvez pela aposta radical numa linha existencial um tanto amarga que parece não combinar bem com a abordagem habitualmente doce do seu cinema. De toda a forma, Belle é uma figura potente no simbolismo das dores da perda, que não oxida facilmente.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
belle-a-fabula-que-ressignifica-o-jogo-de-aparenciasBelle é uma figura potente no simbolismo das dores da perda