Presente na Berlinale 2021, “Memory Box”, de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, já garantiu ao cinema libanês um mar de lágrimas e um clube de fãs organizado em torno do casal de realizadores. Todo o respeito de que já desfrutavam pelo filme de culto “Je Veux Voir” (2008) amplia-se agora, em que revisitam o Líbano do início dos anos 1980, em plena guerra.
Essa revisita dá-se a partir da ótica de uma adolescente que está a descobrir o mundo com a ajuda do rock’n’roll, dos parques de diversão, de beijos na boca. A tocante narrativa – favorita a levar o Urso dourado até agora – é contada em dois tempos, com base nas vivências de Maia, inspiradas nas lembranças pessoais da própria Joana. No filme, Maia mora há anos no Canadá, com a filha, evitando recordar o que viveu na sua terra natal. Mas ao receber uma caixa com antigos pertences da sua juventude, ela vai revirar um baú de mágoas e tentar impedir que o Ontem destrone o Presente.
Em que ponto memória e ficção se confundem, mesmo num contexto de guerra civil?
Joana Hadjithomas: O uso de voice over é um indicativo do que é 100% factual no filme. Mas ele, inegavelmente, tem camadas, muitas, e algumas representam o que é idealizado, o que é lúdico, diante da nostalgia. Por isso, tentámos tratar a memória com texturas distintas.
Khalil Joreige: Memórias não são objetos para o cinema, são um lugar a ser mapeado.
Mas o que move esse mapeamento?
Khalil Joreige: A perceção de que o passado assombra o presente. A questão no filme é ver como Maia exercita a sua maternidade protegendo a filha desses espectros ao decantar deles o que é fantasia e o que é verdade.
Joana Hadjithomas: Não abandonar o passado é algo que está diretamente ligado à nossa habilidade de não desistir do presente.
Fala-se muito no passado de Maia, mas cala-se muito no presente. Onde é que o silêncio vira uma matéria a ser investigada no filme?
Joana Hadjithomas: Depois de uma guerra civil, o grande dilema de uma sociedade é entender como se reconectar. No caso libanês, existem muitos traumas que nos legaram amarguras e uma dificuldade de reconexão. Algumas gerações souberam lidar com o que houve. Outras, não. E as mulheres têm um papel importante de encontrar a sua voz entre mundos que se reconectam. Daí ser um filme tão feminino.
Khalil Joreige: Só é importante entendermos que não devemos chamar de “silêncio” o que, na prática, é “falta de discurso”. Quando se partilha uma memória com alguém, compartilhas um universo. É importante entender o quanto esse “universo” é ou não fabricado. E essa medida vem da vivência do que se partilha.