Sexta-feira, 26 Abril

Palestina: entre o céu e a terra. À conversa com a cineasta Najwa Najjar

Recentemente eleita para a Academia de Artes e Ciências cinematográficas no “ramo” do argumento, Najwa Najjar é um dos maiores nomes do cinema da Palestina e do Médio Oriente.

Filha de pai jordano e mãe palestiniana, em jovem teve a oportunidade de fazer os seus estudos nos EUA, onde experienciou os estereótipos e uma imprensa norte-americana que não se cansava de catalogar os árabes como um perigo. 

Iniciou a carreira no mundo publicitário e estreou-se nas longas-metragens com “Pomegranates and Myrrh” (2008), sobre uma jovem dançarina que defende as terras da sua família depois do seu marido ser enviado para uma prisão israelita. Sucedida internacionalmente, com vários prémios e exibições em todo o globo, a cineasta viria a encontrar problemas quando o filme foi exibido pela primeira vez em Ramallah, despertando protestos públicos por parte do governo do Hamas em Gaza sobre a representação não patriótica da esposa –  alguém não confiável – de um prisioneiro político.

Seguiram-se novos projetos, entre longas e curtas-metragens, destacando-se “Eyes of a Thief”, um thriller multipremiado baseado numa história real, e “Between Heaven and Earth” (2019), exibido ainda este ano no Festival Olhares do Mediterrâneo – onde conquistou uma menção honrosa.

Foi por esse projeto, que acompanha o fim de um relacionamento no meio de um território ocupado, que começamos a nossa conversa com a cineasta no Festival do Cairo, onde Najwa atuou como membro do júri internacional liderado pelo veterano Alexander Sokurov.

Sei que foi premiada recentemente em Portugal, no Olhares do Mediterrâneo, por isso muitos parabéns…

Muito obrigado.

Podemos começar por aí, como nasceu a ideia que levou à concretização deste “Between Heaven and Earth” e qual a importância dele ser apresentado um pouco por todo o mundo?

Vivo na Palestina, em Jerusalém. Vivemos em condições muito difíceis e para fazer uma história cada vez diferente tento sempre observar as coisas que não estão assim tão expostas, das quais não se ouve falar muito. Não tenho interesse em dar as notícias.

Desta vez estávamos na Palestina histórica e tenho cada vez mais amigos que estão em Nazaré e Haifa. Foi aqui que fui a uma loja de Falafel e ouvi falar de um jovem que recusou uma bolsa de estudos em Londres porque era um guardião de Iqrit. Fui ver o que era Iqrit e percebi que esta localidade foi retirada do Google Maps. Investiguei junto de amigos conhecedores de localidades demolidas e disseram-me que foi uma das cinco vilas cristãs junto à fronteira com o Líbano que foram destruídas por Israel entre 1948 e 1952. No caso particular de Iqrit, foi lançado um caso em tribunal, pois os israelitas disseram às pessoas que podiam voltar no espaço de duas semanas. Era o único caso em toda a Palestina em que foi dado – judicialmente – o direito a regressar ao território.* Mas para isso, os palestinianos têm de permanecer nas suas terras para que elas não sejam confiscadas.

Fui até lá com o meu marido, que também é o meu produtor, e demoramos 10 horas, pois os vestígios do local estão a ser retirados como parte da limpeza étnica dos palestinianos. Finalmente, o meu marido viu uma Igreja e disse que Iqrit deveria ser ali. Fomos e encontramos um jovem casal cheio de esperança. Foi a partir daqui que pensei em como transformar isto numa história. Como pegar na história de uma tragédia, destes homems e mulheres que foram esquecidos, que nem no Google Maps consigo encontrar? Como lidamos com o divórcio das nossas próprias terras? Como lidamos com a nossa história que tem sido apagada? E como lidamos com a limpeza étnica? Tentaram fazer isso com eles antes, e agora fazem isso connosco.

Assim, achei que a melhor maneira – até porque adoro o amor – era fazer um filme sobre um casal a divorciar-se e assim começou a história de Salma e Tamer. Eles vivem na Cisjordânia. Ele é filho de um intelectual revolucionário morto em Beirute  – ficção baseada em factos reais ocorridos em 1973 quando três agentes da Mossad vestidos de mulher assassinaram três revolucionários intelectuais da Palestina. Este é o pano de fundo do filme. Claro que transformei as coisas de forma mais ficcional.

O Tamer vem da  Cisjordânia e conhece a Salma, que é de Nazaré. Mas na construção dessa personagem feminina estão também muitas histórias esquecidas. Muitas vezes dizem que os palestinianos que vivem dentro de Israel são traidores, sem perceber a dor, o trauma e o sofrimento que os acompanha. E se pertenceres ao partido comunista ainda sofres mais, pois aí há cristãos, judeus e muçulmanos que vivem e trabalham juntos e essa é a maior ameaça para uma entidade sionista que promove algo que não existe: a democracia. E muitos judeus estão connosco. Existe uma clara diferença entre ser judeu e sionista. Tentei igualmente meter isto na história do “Between Heaven and Earth”.

Eyes of a Thief

Uma coisa que sucede frequentemente nos seus filmes é que usa uma grande subtileza para falar desses temas. 

Para mim, trabalho é escrever, escrever e escrever [o guião]. Depois visitas as locações e preparas o casting, que é algo muito importante. 

Talvez por ter um bacharelato em ciências políticas e economia, por me ter sido negada uma História, pois cresci com fragmentos da História, senti nos EUA onde estudei uma versão muito distorcida dos palestinianos e dos árabes. Demonizaram o Islão e transformaram toda esta questão num problema entre islâmicos e judeus. Esqueceram completamente os cristãos que viviam na Palestina. Eu tinha duas hipóteses: queixava-me ou fazia algo. Por isso decidi estudar cinema e acredito poder contar uma história diferente.

Se quiser contar uma história sobre algo simples, então vejo os noticiários. Não quero fazer o que é esperado de uma história da Palestina, que na verdade é uma história simples. Nós podemos ser complicados e complexos e há coisas que nunca vão ser entendidas, mas tudo bem. Consigo ver um filme português sofisticado, não entender tudo o que assisti, mas pesquisar e tentar perceber. O trabalho dos realizadores não é entregar simplicidade e não é por sermos da Palestina que temos de fazer um cinema simplificado que poderias ver em qualquer noticiário.

O conflito é muito mais complicado do que aparenta, como a história dos judeus árabes. O racismo e descriminação que lidamos não é apenas reduzido a “eles odeiam os palestinianos”. O que Israel está a fazer é contra qualquer pessoa que seja muçulmana, cristã ou judeu árabe. E de acordo com estatísticas, 8 mil bebés judeus árabes foram raptados e entregues aos Ashkenazi para crescerem como brancos.

Quando trabalhas num guião tens de descobrir estas coisas, tens de entregar algo novo e também um pouco de esperança. Não consigo fazer um filme todo negro, porque as nossas vidas não são apenas tingidas a preto. Temos o bom, o mau e o amor. Existe uma história que tem sido esquecida e que devemos incluir nos nossos guiões de diferentes maneiras. 

Há décadas que a Palestina vive confinada, enclausurada  – entre outras coisas – com recolheres obrigatórios, dificuldade de circulação, etc. Agora com a pandemia, e novos confinamentos, como é a vida lá?

Estamos habituados. Eles dizem-nos que há um confinamento obrigatório e nós pensamos: vivemos sob ocupação desde sempre. Eles confinaram-nos desde sempre. Sendo honesta consigo, acho que estamos mais preparados para a pandemia que qualquer outra pessoa no mundo. Estamos encerrados, mas fazemos questão de saber dos nossos vizinhos, falar com eles, etc. É uma continuação da nossa vida, infelizmente.

A boa coisa disto é que o mundo inteiro experienciou por um tempo como é a nossa vida quotidiana. Quando não tens qualquer escolha. Quando és forçado a ficar em casa e é alguém a ditar-te o que podes fazer. No caso da Covid-19, as pessoas não entendiam certas coisas – é uma gripe? Não? Mas no outro nível, de alguém controlar a nossa vida, estamos habituados. Em geral, soubemos lidar com a situação. 

Najwa Najjar

Além, obviamente, das críticas implícitas a Israel, existe também um olhar interno às autoridades da Palestina. Ao Hamas. Como é fazer um filme sobre isto e depois viver lá com eles?

O Hamas está essencialmente em Gaza, embora também se encontrem noutros territórios ocupados. No geral, é difícil ter qualquer tipo de governo quando vives sob ocupação. Não interessa se é o Hamas ou outro no poder. É bom sermos críticos em relação a certas coisas. Isto é uma revolução que ainda não terminou. Ainda não conseguimos ser livres, por isso não devemos ir por nenhum campo de dominação, religiosidade, que é adulterada para encaixar nas agendas políticas. Há uma ocupação, existem pessoas a viver ali.

É como viver num regime de Apartheid…

Sim e cada vez mais e mais…

Está a piorar? Ainda mais?

Sim, por causa do [Donald] Trump. Ele legitimou o fascimo internacional. Fê-lo paracer algo razoável. 

E acha que com a saída dele, as coisas podem melhorar?

Normalmente, com os israelitas, quando as coisas estão feitas não há volta atrás. Não acho que o Joe Biden esteja realmente interessado na Palestina. Ele diz que sim, mas qual a sua solução? Neste momento somos menos de 8% do que representava a Palestina historicamente. Tudo é controlado. As estradas são controladas por Israel. Uma das maiores cidades da Cijordânia tem uma entrada e uma saída. Como pode isto acontecer com o mundo a ver? Não entendo. 

Muita gente não entende, mas continua e continua…

Sim, por causa de Hollywood e por causa das notícias que demonizam tudo. Quando demonizas as coisas, retiras a humanidade às pessoas. Por isso é importante fazermos filmes de uma maneira diferente para mostrar em festivais – como o Olhares do Mediterrâneo em Portugal – e em todo o mundo. Festivais que mostrem os nossos filmes, a nossa narrativa.

E agora que é membro da Academia de Hollywood, pode passar a mensagem da Palestina com mais vigor aos seus colegas do ramo de argumento.

Sim. Há muitos de nós que trabalhamos para essa exposição. Tentamos, mas somos poucos. E mais. Eles conseguiram transformar em antissemitismo qualquer crítica ao fascismo de Israel. Mas não se esqueçam que também existem judeus contra o estado das coisas, mas a nós chamam-nos de antissemitas. Não aceito mais essa linguagem. O que podemos fazer? Calar-nos? O filme foi selecionado para os Prémios da Academia Europeia, sou membro da Academia de Hollywood e sou júri em vários festivais, por isso temos uma voz. É difícil, mas é preciso usá-la. 

E agora que está aqui no festival do Cairo, no júri, como é encontrar um filme da Palestina (Gaza Mon Amour) na competição?

Não posso falar dos filmes, mas estou num júri internacional por isso não tenho nacionalidade nesta questão. É um privilégio ver todos os filmes.

Li que tem um novo projeto, agora no Egito e não na Palestina (risos).

Sim, mas tem uma personagem da Palestina (risos). 

Também sei que tem a ver com a Era Dourada do Cinema Egípicio, quer falar um pouco desse projeto?

Bem, eu vejo a Palestina em todo o lado. A nossa essência, de liberdade e revolução, aquilo pelo que lutamos encontrava-se muito na Alexandria da década de 1930. Há uma personagem da Palestina e é um filme musical. Estou muito interessada em fazer o projeto, mas vejo a Palestina em todo o lado. Se vir um filme português que me toque de certa maneira, vejo-nos também lá. 

Pomegranates and Myrrh

E vai percorrer personagens icónicas dessa era, como o Omar Sharif?

É um pouco antes dele. É um outro tipo de história de amor. Era algo que queria fazer há cinco anos, comecei a escrever o guião, mas era dispendioso, por isso avancei para o “Between Heaven and Earth” logo depois de promover o “Eyes of a Thief”.

Durante a pandemia peguei novamente nele, talvez porque procurava esperança. Por isso rescrevi o guião e, no mês passado – quando tive num painel sobre o Empoderamento da Mulher – encontrei várias pessoas que estavam interessadas nele. É um pouco desafiante para mim, pois nunca fiz um musical e não quero seguir a veia Andrew Lloyd Webber. Será algo que vai falar a nossa linguagem. Talvez muita gente veja um filme egípcio e pense que é demasiado melodramático. Claro, é um filme égípcio e é lindo! Porque devemos impor algo que não é nosso? Estou a coescrever com um autor egípcio para ter autenticidade e estou ansiosa por filmá-lo.

E filmar aqui será mais fácil que na Palestina?

Sim, com os produtores e a soma monetária certa poderemos avançar. Fazer um musical é difícil, e não quero avançar sem ter a certeza que estamos preparados para ele. 

Disse no Festival El Gouna que na Palestina estão a tentar atingir o 50/50 na produção de filmes com uma equipa de homens e mulheres, mas que estava a encontrar problemas em encontrar mulheres na direção de fotografia. Como é na Palestina ser uma mulher na indústria do cinema?

É fácil. As mulheres são muito respeitadas na Palestina, talvez porque são viúvas de alguém – do marido, do irmão, dos filhos. As mulheres tomam conta das coisas, das casas. Algumas estiveram detidas e tiveram de ser empreendedoras para viver. Tenho amigas que são realmente poderosas. Nunca senti problemas por ser mulher. Talvez uma vez, num set, com um ator, mas nem precisei fazer nada, porque a equipa toda caiu em cima dele e foi colocado no seu lugar imediatamente. (risos) Ousou em ter uma atitude de diva nas filmagens. Sou muito calma nas filmagens e ele ultrapassou as marcas. Nem tive de dizer nada, foi atacado por todos em palco. 

Mas voltando ao tema, nós já temos os 50/50 e nunca senti diferença. Não sei, talvez alguém o tenha sentido. Tenho 20 anos disto, sou realizadora e argumentista, o meu marido produtor, por isso talvez seja diferente. Mas quando comecei nunca pensei ou senti se era mulher ou homem. A pessoa é boa ou má? Isso é mais importante. 

E como vê o cinema na Palestina. Há uma nova geração com qualidade?

Sim. Acho que há sempre cineastas a tentarem nascer. Houve três filmes este ano, e para o ano mais um par deles. Creio que é preciso também ter consciência – como eu tive – que precisamos das coproduções porque há muito pouco dinheiro na Palestina. Temos de coproduzir filmes, mas às vezes quando coproduzes com a Europa existe uma tentativa de transformar a história em algo mais acessivel à audiência ocidental, perdendo autenticidade e espectadores na nossa casa.

Tomei decisões, coproduzimos com os países que gostamos e normalmente deixam-nos mais livres. Quando explico a um coprodutor um projeto, apresento as razões porque as coisas têm de ser feitas de uma maneira a não entregar apenas uma história simples. Por isso, estes jovens produtores e realizadores quando fazem um filme em coprodução podem ter a tendência a ceder. E o segundo filme ainda é mais difícil que o primeiro, pois perdes a aura de “novo cineasta”. Esse é o meu único aviso: tenham cuidado e não comprometam as vossas ideias.

E sobre as plataformas de streaming, planeia trabalhar com elas ou ainda escreve e filma para cinema?

Sabe, nos últimos seis ou sete meses temos visto tudo online. Odeio. Quando fui ao Festival El Gouna, e voltei a ver as coisas no grande ecrã, foi como o paraíso. É uma diferença tão grande! Pensava que isso do streaming era interessante antes da pandemia, mas não. Ver as coisas numa sala de cinema, ouvir os ruídos à tua volta das pessoas, não há nada como isso. 

Mas não vou dizer que sou contra a TV, pois esta alcança muita gente. Acho é importante fazer cinema para não o transformarmos numa arte em extinção. Tem de haver continuidade…

O Kusturica disse há uns anos que ir ao cinema no futuro será como ir a ópera. 

Sim, e o Scorsese disse há cinco ou seis anos que ir a uma sala de cinema iria custar uns 50 dólares, pela raridade que se iria tornar. Acho isso uma pena. Ainda queria que os nossos filhos fossem a um cinema, que fossem namorar para as salas, sair. É toda uma experiência diferente.

* O Supremo Tribunal de Israel decidiu dar razão aos palestinianos em 1951, mas antes deles retornarem à vila, as forças da IDF (Forças de Defesa de Israel) destruíram a localidade no dia de Natal desse mesmo ano. Os descendentes até hoje mantém um posto avançado na igreja da vila e enterram os seus mortos no cemitério. Todas as tentativas de cultivar as terras são contrariadas pela Administração de Terras de Israel. 

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