Sábado, 20 Abril

Ressaca: um balé de resistência na degradação moral do Rio de Janeiro

Na seara documental do Emmy Internacional, o Brasil brilhou com “Ressaca“, de Patrizia Landi e Vincent Rimbaux, laureado na categoria Arts Programming, pelo seu olhar sobre a luta dos artistas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro para resistir ao desmonte cultural da sua cidade e do seu país. Quando os salários dos funcionários da tradicional casa de espetáculos carioca foram suspensos, a dupla de documentaristas entrou em cena, para registar a espera. Uma espera espalhada por dias que se alongam sem boas notícias, Mas, a despeito da ruína, a trupe da dança e a música reagiu, ciente de que era preciso produzir para sobreviver. O filme é uma coprodução entre Brasil (Cafeína Produções, de PH Souza) e França (France Télévisions / Babel Doc) e percorreu importantes festivais internacionais. Em 2019, conquistou o troféu Redentor de Melhor Documentário no Festival do Rio, recebendo ainda o prémio de Melhor Som no 29º Cine Ceará. Em 2021, a longa-metragem entra para a grade do Canal Brasil. Na entrevista a seguir, Patrizia conta ao C7nema como era o estado de coisas no Rio de Janeiro que retratou.

O seu filme desenha (de forma bela) o Theatro Municipal como um bunker de resistência para a ópera, a música clássica e a dança numa metrópole que agonia. Mas ficou-me a (boa) sensação de que o protagonista dessa história é a própria arena, ou seja, o Rio de Janeiro em si, com o seu apagar da memória. Que Rio de Janeiro fez do Theatro Municipal um Património simbólico e que RJ o seu filme encontrou?

O desmantelamento do aparelho cultural que hoje testemunhamos é precedido por um período de efervescência, de valorização do património histórico, de abundância e de autoestima. Havia esse zeitgeist e o Rio era o epicentro dessa ebulição. A reabertura do Municipal, em 2010, depois de dois anos de uma ampla reforma e um investimento de R$ 65 milhões, refletia o momento de consolidação de políticas culturais, como o vale-cultura e as mudanças na Lei Rouanet para a expansão da produção artística no país. Durante a cerimonia de reinauguração, o então presidente Lula, fez o seguinte discurso: “O país não pode prescindir de 1 metro quadrado de espaço cultural, porque é exatamente por meio da cultura que vamos construir uma sociedade mais justa e humanista. Assistir a um espetáculo num local tão maravilhoso e singular, como este teatro, alimenta tudo aquilo que nos é caro: os nossos sonhos“. O Municipal era sim um património simbólico, portanto, restaurá-lo era restaurar a nossa dignidade. O fruto desta bem sucedida construção imagética ao longo de anos foi a escolha da cidade para sediar os grandes jogos. A expetativa era de que a Copa do Mundo e as Olimpíadas representassem o auge do crescimento económico e do reconhecimento internacional do Brasil como potência mundial, mas não foi isso o que aconteceu. Em 2017, o ano em que começamos a filmar o ‘Ressaca‘, o Brasil estava mergulhado numa crise política e económica sem precedentes. O Rio de Janeiro, referência quando se fala do Brasil no exterior, estava falido: desemprego, queda do preço internacional das commodities, queda na arrecadação tributária, problemas fiscais – tudo isso sendo banhado com a gasolina da Lava-Jato. Começamos o “Ressaca” no momento em que se decretava a prorrogação do estado de calamidade financeira e a suspensão dos salários dos servidores. Além do caos económico, havia também o viés político que alicerçava esse sufocamento: um ano antes, num fatídico 17 de abril de 2016, conheceríamos o material humano que conduziria o país nos anos seguintes. O opressor não tolera a arte.

E a situação do Theatro Municipal nessa época?

O Municipal era então uma terra arrasada, os corpos artísticos (corpo de baile, coro e orquestra) e administrativos sobreviviam através da doação de cestas básicas, organizavam espetáculos por conta própria para arrecadar algum dinheiro e para se manterem sãos. As apresentações a preços populares enchiam a casa, devolvendo alguma dignidade, mas eram insuficientes para aliviar o colapso financeiro. As pessoas começaram a adoecer: hipertensão, síndrome do pânico, depressão. Houve casos de morte por enfarte. Embora eu tenha frequentado durante dois anos os salões do Municipal, nunca consegui naturalizar o contraste brutal entre abundância e escassez que havia ali dentro. O Municipal funcionava como um microcosmo capaz de explicar a situação do Rio de Janeiro: Decadance avec elegance. O que era aquele teatro se não uma metáfora da cidade?

Temos em “Ressaca” um filme político, em certa medida, centrado na residência-resistência artística, e temos um filme-património sobre a força arquitectónica (arquitetura física e humana) do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Como essa poética se equilibra entre o pleito político e a dimensão de retrato que o filme assume ao cartografar as atividades do Municipal a partir de seus artistas?

Não acredito ser possível separar o fazer documental do fazer político, mas é preciso dosear as intencionalidades, equilibrá-las, como você diz. Busquei afastar a fumaça política para que o drama humano ficasse em primeiro plano, embora os contornos políticos estejam presentes o tempo todo. É uma coisa que faço por meio do cinema direto, privilegiando uma narrativa guiada pela personagem. Quando compreendi o que tinha à disposição – um coletivo de indivíduos no auge de suas jornadas heróicas – ficou claro que o eixo narrativo deveria ser deslocado na direção da personagem, ou seja, o vetor político foi obliterado por essa dimensão de retrato a que você se refere. E assim, foi possível revelar o artista (outrora grande e virtuoso) enquanto homem comum: frágil e assustado diante das ameaças prementes, e em paralelo, testemunhar o surgimento de heróis do quotidiano, arautos da resistência. Nesse sentido, o cinema direto aparelha-me com recursos mais abrangentes e oferece-me maiores possibilidades dialógicas e poéticas, porque substitui o discurso – que poderia, entre outras tragédias, polarizar, repelir – pelo drama humano, que é universal – e a emoção é a prova. Por exemplo: no universo fílmico, o registo de um avô tentando dar encaminhamento profissional ao neto mulherengo é mais potente do que qualquer discurso sobre a virtude. Essa construção narrativa conferiu o tom dramático pretendido e, ao mesmo tempo, conteve eventuais excessos, que poderiam resvalar para o ativismo, para o panfleto.

Como foi o trabalho de montagem, em especial na valorização dos vetores de movimento dos artistas retratados?

Foi sempre em busca de evidenciá-los operando a perfeição, e, com isso, tornar ainda mais insuportável a ideia de que eles precisem deixar o país para sobreviver ou que não possam desenvolver as suas potencialidades, ou que ocupem espaços que não estejam à altura de seus talentos. Teremos falhado enquanto nação, teremos rompido o pacto civilizatório, se essa realidade perdurar.

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