Quinta-feira, 28 Março

Deus ainda é brasileiro, apesar dos pesares, na nova produção de Carlos Diegues


Recém-chegado aos 80 anos, tendo feito anos a 19 de maio, no meio da pandemia, Carlos Diegues, o Cacá – braço do cinema na instituição maior da literatura no seu país, a Academia Brasileira de Letras, atualmente devotado a uma prolífico carreira como autor de crónicas – dá um passo a mais nas suas expedições pelas mitologias da sua nação. Ele está a elencar o Todo Poderoso em pessoa para protagonizar a sua nova longa-metragem.

A sua tarefa de todo dia, nesta quarentena, tem sido retocar o roteiro de “Deus Ainda é Brasileiro”, inspirado por uma narrativa do escritor João Ubaldo Ribeiro (1941-2014). Com base na prosa de Ubaldo, Cacá fez “Deus é Brasileiro” (2003), um sucesso de bilheteira com cerca de 1,6 milhões de bilhetes vendidos, assumindo o ator Antônio Fagundes como a encarnação do Altíssimo. Na sua sequência, em meio a cataclismos e muita corrupção, Deus regressa para entender a cabeça dos mortais de perto. Na entrevista a seguir, o realizador de cultos como “Bye Bye Brasil” (1979) e “Chuvas de Verão” explica ao C7nema como será seu olhar para o Divino e fala de sua relação com o audiovisual português, sobretudo depois de “O Grande Circo Místico”, lançado mundialmente em Cannes, em 2018.

O que esperar do seu regresso a “Deus é Brasileiro”?

Estou aproveitando a quarentena para refazer, pela quinta vez, o roteiro de “Deus ainda é brasileiro”. Até começar a filmar, vamos estar a fazer novas versões do roteiro, a cada etapa da produção (novos acontecimentos destacados, escolha da equipa, de elenco, de locações, etc.). Nunca filmei com menos de um décimo tratamento do roteiro e a explicação é simples: como cineasta, não me sinto um Deus que põe a realidade ao seu serviço. Ao contrário, persigo a realidade do momento em que trabalho e uso-a assim, conforme ela me chega. Não posso marcar a data de filmagem, enquanto não tiver uma ideia do fim dessa pandemia. O filme que quero fazer é quase todo em exteriores, em externas, o que me facilita a vida. Mas não posso cometer enganos de programação, não posso pôr em risco a saúde dos profissionais que vão trabalhar comigo. Vamos esperar um pouco, para saber quando podemos começar em segurança.

O que significa apostar numa comédia neste momento?

Não se trata de uma comédia pura e simples, no sentido de fazer rir despropositadamente. Eu diria que este filme é uma comédia humanista, uma crónica do que está diante de nossos olhos e, ao mesmo tempo, que nos faz rir, nos indicando caminhos mais adequados nesse momento difícil do Brasil e da humanidade.

Que descobertas de cinema, TV e de literatura você fez nessa quarentena?

Quando não estou escrevendo, tenho lido muito e visto muitos filmes e pedaços de séries na televisão. Mas, de uns anos para cá, tenho matado a minha fome de ficção com filmes, lendo menos romances e contos. Atualmente, leio dois livros, quase simultâneos: “A revolução das plantas“, de Stefano Mancuso; e “O povo brasileiro”, de Darcy Ribeiro. Acabei de terminar uma leitura muito proveitosa de “Os engenheiros do caos”, de Giuliano Da Empoli. Vi muita coisa interessante em matéria de audiovisual. Mas, nesses últimos quatro meses de isolamento social, o que vi de mais admirável foi uma revisão do clássico “Intriga Internacional” (“North by Northwest”), de Alfred Hitchcok. Que filme extraordinário!

Qual é a sua expetativa para a chegada do ator Mário Frias à Secretaria de Cultura no Brasil, que já trocou de gestão várias vezes durante o governo de Bolsonaro?

Desisti de esperar alguma coisa desse governo para o audiovisual brasileiro. Até que tentei, mas cheguei à conclusão de que era inútil insistir. Já enfrentamos muita política pública prejudicial à cultura e ao cinema brasileiro.  Mas agora é diferente. Não é que o atual governo não se interesse pelo cinema e pela cultura brasileira, como tantos outros que já enfrentamos ao longo do tempo. O governo Bolsonaro é simplesmente contra a cultura e o cinema no Brasil. Resta-nos nos prepararmos para esses últimos dois anos e meio do seu mandato, e envidar todo o esforço para eleger um outro governo, mais razoável, em 2022.

Como é a sua relação com o cinema português e de que maneira a experiência de “O Grande Circo Místico“, uma coprodução luso-franco-brasileira, ampliou esse contato com os nossos patrícios?

Cultivo a cinefilia de dois grandes cineastas portugueses, ambos infelizmente já falecidos: Manoel de Oiveira e Paulo Rocha. Oliveira era um grande mestre, um homem que inventou um cinema pessoal que lhe convinha e que era, ao mesmo tempo, universal. Quanto a Rocha, ele era um dos grandes cineastas de minha geração, em todo o mundo. Um grande amigo, com quem aprendi muito sobre o cinema e a vida, vendo os seus filmes e conversando com ele. Isso não quer dizer que não acompanho o atual momento do cinema português, uma cinematografia moderna que me interessa muito. “O Grande Circo Místico” foi um filme brasileiro filmado em Portugal. Mas eu não precisava filmar em Lisboa para amar esse país e o seu povo. Sempre cultivei Portugal na minha vida, desde que fui ali pela primeira vez, em 1964.

Qual é a representação de Deus e da fé no seu cinema?

Não sou religioso, mas não posso dizer que sou ateu. Não acho que Deus seja tão divino assim, pois tenho a impressão de que ele é formado por partes de nós mesmos. No meu cinema, acho que ele vai representar sempre um direito a todas as possibilidades, num mundo de criação em que nenhuma é proibida. Tem duas historinhas que representam muito bem o que quero dizer. A primeira é sobre uma babá [ama] que tive em Maceió, quando não tinha ainda cinco anos de idade. A Bazinha me botava para dormir contando histórias do ‘Zumbi dos Palmares‘, que havia vivido na região de onde ela vinha, a Serra da Barriga. A Bazinha dizia que o Zumbi ainda estava vivo, desde o século XVI. Segundo ela, ninguém pegava ele porque o Zumbi sabia voar. A outra história, mais recente, se passou comigo por ocasião da nomeação do Papa Francisco, que nos havia surpreendido. Num botequim que eu costumava frequentar, perto de minha casa, ouvi meu garçom preferido dizer: “Deixa para lá, o papa é argentino mas Deus é brasileiro”. Eu não podia ter nascido noutro país.

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