Existe um hábito antigo no Brasil, quase uma superstição nas estradas, de se usar frases de instantânea beleza em pára-choques de camiões, incluindo aí um aforismo de Victor Hugo: “A palavra, como se sabe, é um ser vivo”. “What Do We See When We Look at the Sky?” traz uma narração aforística cheia de frases como a do autor de “Os Miseráveis”. Talvez porque, em certa medida, a produção georgiana apresentada na quarta-feira à Berlinale 2021, injetando lirismo em veredas esturricadas de realismo, seja também um pára-choques para a Scania (famosa marca de camiões) do sobrenatural, partindo de uma metonímia literária para abrir-se à invenção mais desvairada.

Alexandre Koberidze fez um filme nas raias da magia, onde o inusitado dita as regras das relações interpessoais, apostando na força da fotografia de Faraz Fesharaki para explorar o colorido (quase sempre de uma aparência sépia) de espaços abertos e de ambientes íntimos.

É uma narrativa que valoriza ao máximo a geografia, mas sem abrir mão dos verbos, dos substantivos, de raros advérbios e adjetivos, tratando o falar com especial atenção, reconhecendo-a como parte sinestésica da dinâmica cinemática, pelo efeito do som, pelo efeito poético. Koberidze assume, já nas primeiras cenas, que a mais aconchegante casa que uma palavra pode encontrar é a literatura. Tanto é que um poema de Paulo Leminski poder ser um farol preciso para iluminar a floresta de signos que o cineasta georgiano criou a partir de um livro aberto: “Leite, leitura / letras, literatura, /tudo o que passa, /tudo o que dura /tudo o que duramente passa /tudo o que passageiramente dura /tudo, tudo, tudo /não passa de caricatura /de você, minha amargura /de ver que viver não tem cura”. Tampouco o cinema, como comprova a potente seleção desta Berlinale e as recentes incursões da Geórgia no cinema.

Tudo o que se passa em ‘What Do We See When We Look at the Sky?’ é responsabilidade de um livro que cai no chão, abrindo uma progressão aritmética de acontecimentos, muitos deles na chave do querer, do beijo na boca, do beijo que não cabe em bocas que não se tocam. A partir do desencontro – forçado por um evento metafísico digno de Luis Buñuel – de um quase casal, num corriqueiro enredo de boy meets girl, transforma-se numa árvore de signos, como vem sendo a tónica de alguns grandes filmes da Geórgia no grande ecrã.

Basta pensar no todo-poderoso “Beginning” (“Dasatskisi”), de Dea Kulumbegashvili, vencedor da Concha de Ouro do último Festival de San Sebastián, coroando uma investigação contemplativa e silenciosa sobre opressão feminina, culminando com a metáfora “do pó vieste ao pó voltarás”. Tal qual fez a estreante Dea, Koberidze também envereda por trilhas místicas, embora não necessariamente bíblicas. E silêncio não é, no caso dele, uma virtude, em parte porque existe no realizador de “Colophon” (2015) uma necessidade de se reclassificar as pelavas no audiovisual.

O seu estonteante novo filme “What Do We See When We Look at the Sky?” (“Ras vkhedavt, rodesac cas vukurebt?”) entra como um bálsamo de lirismo numa forte seleção competitiva. É notável a evolução que a gestão Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian trouxeram para o Festival de Berlim, sobretudo na competição pelo Urso de Ouro, de 2020 para cá. Mesmo com todos os percalços impostos pela covid-19, que obrigou a rearranjos e adiamentos, a dupla montou um pacote de 15 competidores de potências narrativas plurais, que vê o concorrente georgiano impor-se como um analgésico para as enxaquecas de uma Euroásia pandémica, ao apostar numa dose de realismo mágico. Só o quebra-cabeça gerado pela troca de aparências dos seus protagonistas já rende o encanto suficiente para alimentar o interesse na sua investigação acerca da nossa habilidade de nos deixar levar pelo encantamento.

Quatro anos depois de seu “Let the Summer Never Come Again” (2017), Koberidze aposta numa suspirante história de afagos que não pode realizar-se por causa da Natureza. Na trama, um casal de jovens, Lisa e Giorgi, que se esbarra na rua, e deixa cair um livro, fica encantado e marca um encontro. Os dois vão para um encontro mas não conseguem vêr-se. O motivo: da noite para o dia, eles mudaram de forma. É uma espécie de feitiço, no efeito do abrir do livro, que muda tudo o que se passa naquele mundo onde vivem, refletindo as transformações sociais e políticas da nação. Um mundo apaixonado por futebol, mas também pelo ato de ler.

Vinhetas, legendas e um narrador omnisciente conversam connosco, dando a essa fábula uma aparência de hipertexto da web, unindo tradição e contemporaneidade. É algo similar ao que se viu no monumental “Your Name” (2016), de Makoto Shinkai. A diferença é que a animação japonesa tinha células sci-fi. Já Koberidze é a antítese da ciência, é a causa que não se explica, mas que se vive e se frui, na suspensão da descrença mais radical.

Vira e mexe, os georgianos fazem das boas, como ele fez no seu estudo da habilidade que sua pátria ainda tem de superar o cinismo do dia a dia. Entre as 15 repúblicas reunidas sob a égide socialista da União Soviética, a Geórgia foi uma das principais potências cinematográficas do grande império audiovisual que fez do audiovisual um trampolim para ideologias, tendo permanecido cheia de som e de fúria nos ecrãs mesmo com os rearranjos geopolíticos do seu território.

No ano passado, o DocLisboa, um dos maiores festivais do mundo dedicados a estéticas do Real, promoveu uma retrospetiva da terra de Koberidze, mapeando autores como Mikhail Kalatozov (vencedor da Palma de Ouro de Cannes, em 1958, por “Quando Voam as Cegonhas”) e Serguei Paradjanov (realizador do premiado “A Lenda da Fortaleza Suram”). Revisitou-se ainda o legado de Nutsa Gogoberidze (1902-1966), a primeira realizadora da Geórgia a ganhar notoriedade global, conhecida por filmes como “Bulba” (1930). “A Minha Avó” (“My Grandma”, 1929), uma sátira surreal da burocracia do jovem Estado soviético, assinada pelo ator-realizador Kote Mikaberidze, fez culto e tem uma conexão direta ao trabalho de Koberidze em “What Do We See When We Look at the Sky?”, que pode sair de Berlim com o prémio de realização.

Ganhando ou não, ele já saiu vitorioso, por desafiar o cânone realista e político da Berlinale, celebrando a fantasia como um estado de exceção. Uma vez mais, evoca-se Leminski, para dizer (e saber) que “isso de querer / ser exatamente aquilo / que a gente é / ainda vai / nos levar além”. Que leve Koberidze à consagração.

(crítica originalmente escrita em março 2021)

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
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