Ao longo da sua ainda curta carreira, o francês Julien Faraut tem escolhido o desporto como meio da sua investigação e intervenção cinematográfica usando a busca da perfeição como motor. Ele mesmo disse-nos, em jeito de auto-elogio e distinção, numa entrevista em 2018, ser dos poucos cineastas gauleses a seguir essa rota.

Quando lançou “Un Regard neuf sur Olympia 52”, em 2013, tinha em Chris Marker uma referência no seu retrato dos Jogos Olímpicos de Helsínquia (e o filme ‘Olympia 52’) para depois, a partir daí mostrar o nascimento de uma grande estrela, o atleta da então Checoslováquia Emile Zatopek.

Depois disso, o francês orientou a sua lente para um dos maiores tenistas de sempre: o irascível John McEnroe, socorrendo-se mais uma vez da linguagem cinematográfica e das palavras escritas em torno desta arte, instalando no seu “John McEnroe: O Domínio da Perfeição “ pensamentos do crítico Serge Daney, ligando-o à construção da perfeição de um atleta, enquanto reivindicava igualmente os desafios do desporto numa transição profunda para o estatuto profissional.

Nessa mesma entrevista de 2018, Faraut dava-nos também a ideia de como seria o seu próximo filme: “Será sobre uma equipa feminina de voleibol no Japão, na década de 60. É sobre o desporto em si, mas abordará a condição feminina e as vidas industriais, até porque estas mulheres trabalhavam e viviam numa fábrica de têxteis. Quero mostrar através destas condições que estas atletas eram muito mais resistentes do que as atuais, contrariando a ideia de que hoje se treina mais e melhor de forma a atingir a perfeição. Estas mulheres vão demonstrar o contrário.”

Volvidos 3 anos, Faraut estreou este seu novo filme, “Les Sorcières de l’Orient”, no Festival de Roterdão, traçando mais uma vez no seu currículo um retrato da perfeição nos tempos em que o desporto não estava ainda regido pela cultura de uma indústria profissional. O resultado final deste seu novo trabalho é delicioso.

Abandonando de alguma forma a sua veia meta de construção e ligação dos dispositivos cinematográficos ao desporto, que os seus filmes anteriores evidenciaram, Faraut concentra-se efetivamente nos seus objetos, olhando para os tempos em que os feitos ocorreram, mas visitando hoje as envelhecidas heroínas, que perante nós contextualizam tudo o que viveram e ainda vivem. 

Começamos assim por conhecer as mulheres que se tornaram conhecidas como “Les Sorcières de l’Orient”, pelo seu infindável – e ainda por bater – registo de vitórias consecutivas num desporto dominado pelos países de leste, em particular a URSS. Logo aqui, o conceito de “feiticeiras/bruxas” é debatido pelas visadas, pois trata-se de uma palavra com significados diferentes nas mais variadas culturas. A imagem padronizada culturalmente de “bruxas” nada tem a ver com elas, assumem, mas lá admitem que se pensarmos na “sobrenaturalidade” das suas capacidades, então o termo pode ser apropriado.

A partir de um jantar/reunião no presente partimos então para o passado, recorrendo o cineasta a imagens de arquivo e registos de animação 2D – esteticamente enraizados na cultura japonesa exportável para o ocidente – para visitar os tempos em que essas empregadas fabris se levantavam às 6 da manhã, começavam a laborar na fábrica às 8h, e dedicavam apenas a tarde ao ginásio e treinos de vólei, que se estendiam até bem perto da meia-noite. Isto, dia após dia, descansando apenas 1 vez por semana.

Esse método de trabalho, conduzido por um treinador “carinhosamente” apelidado de “demónio” por todos, era também um reflexo do Japão após a 2ª Guerra Mundial, contextualizado o cineasta a situação e pensamento coletivo com alguns retrocessos na história do país no século passado. Mas mesmo seguindo por aí, o foco neste documentário é mesmo a intensidade e o grupo de vencedoras que se criou, apresentando Faraut imagens dos principais desafios que as atletas tiveram, com incidência para o Campeonato do Mundo e os Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964, onde, após a maior esperança do judo nipónico ter perdido a medalha perante o seu próprio público, a pressão sobre a equipa de vólei intensificou-se.

É absolutamente fascinante – e tenso, mesmo sabendo o resultado final – ver o jogo de imagens que Faraut coloca em cena, para deleite do espectador, do combate entre Japão e URSS nessa final, tudo carregado ainda ao som dos Portishead e o seu “Machine Gun”, provocando longos arrepios neste retrato da perfeição numa competição.

O filme mantém, aliás, sempre o seu lado de homenagem às atletas visadas, não só uma elevação aos feitos físicos, mas à sua espiritualidade e psique em tempos em que um Japão carregado de tradições de génese patriarcal condicionava o papel das mulheres na sociedade.

Assim, e seguindo uma forma onde o “autor” já não sente uma necessidade de explicar a genética do seu fascínio ao desporto, ligando-o à paixão pelo cinema, o realizador francês parte imediatamente para a análise das atletas de voleibol japonesas, que, até hoje, mantém recordes de eficácia em competição, com mais de 200 triunfos consecutivos.

E com isto tudo, Faraut triunfa no principal objetivo que definiu: “ mostrar que estas atletas eram muito mais resistentes do que as atuais, contrariando a ideia de que hoje se treina mais e melhor de forma a atingir a perfeição.”

(Crítica originalmente escrita em fevereiro de 2021)

Pontuação Geral
Jorge Pereira
les-sorcieres-de-lorient-julien-faraut-e-a-incessante-busca-pela-perfeicao-no-desportoJulien Faraut prossegue com intensidade e mestria a sua busca da perfeição no desporto