Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foram assassinadas 175 pessoas transexuais no Brasil em 2020, número que representa um aumento de 29% em relação a 2019 e que significa que, em média, um transexual é morto a cada 48 horas no Brasil.

Estes números negros da morte de transexuais no Brasil não são um ponto de partida da primeira longa-metragem de Madiano Marcheti, “Madalena“, mas ganham relevância e servem de início de uma discussão para uma narrativa que começa com o corpo da personagem-título deitado sem vida num extenso campo de soja onde as Emas vão bicando por entre a vegetação.

Que não se espere, porém, a investigação à morte, pois o realizador foca a sua atenção na região agrária onde filmou (e cresceu), e nas suas gentes, em particular num trio de personagens que não se conhece, mas que estão ligados à vítima de alguma forma. De um lado temos Cristiano (Rafael de Bona), que supervisiona os campos e o negócio de família, sempre perseguido pela figura do pai. Ele toma consciência da presença do corpo nas suas terras, mas imediatamente proíbe todos os trabalhadores de lá irem, temendo que o caso possa colocar em risco a campanha eleitoral que se avizinha para a mãe. Depois temos Luziane, anfitriã de um clube noturno, que procura Madalena para recuperar uma dívida, e também Bianca (Pamella Yule), uma mulher negra trans, amiga de Madalena, que com as companheiras divide as coisas dela.

Afastado o cenário de investigação policial, e apesar de os seus alicerces serem dramáticos, Marcheti filma tudo com uma tensão e olho para o bizarro e sombrio, entregando pequenos detalhes que transformam este num objeto críptico de suspense onde a atmosfera faz o filme, pois o corpo de Madalena sente-se como uma espécie de fantasma ou assombração que paira sobre todos de alguma maneira.

E apesar do Marcheti definir o teatro como a sua principal fonte inspiracional, neste seu avanço para as longas-metragens é inequívoco um trabalho estético e sonoro acurado na criação de uma atmosfera sombria, de permanente nervoso miudinho. Se o estilo gótico ganhou principalmente vida na escultura, pintura, arquitetura e literatura, e foi entretanto transplantado para o cinema com mestria por vários artesãos da sétima arte, o que fascina neste “Madalena” é que a essa aura soturna, o realizador acrescenta uma boa dose de toxicidade masculina e de interioridade, que transforma tudo isto também numa análise sociológica, onde se sente severamente a invisibilidade da personagem trans, pois à medida que a história avança, a vida continua e encontrar ou dar descanso à desaparecida nunca é prioridade.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
madalena-a-morbidez-da-invisibilidadeCom um trabalho estético e sonoro acurado na criação de uma atmosfera sombria, "Madalena" viaja por terrenos góticos e sociológicos que nos remetem para a invisibilidade dos trans na sociedade