Pedaço de “natureza morta” social, de intenso escape ao óbito anunciado de uma ruralidade em extinção, “Destello bravío”, da espanhola Ainhoa Rodríguez, demonstra duas coisas: que a dita “nova vaga” de cinema galego e catalão (com o dedo do produtor Luis Miñarro) já expandiu muito do seu universo e tiques por outros territórios, como a Extremadura, e que o cinema de nuestros hermanos encontrou dentro de si um espaço inspiracional através de uma renovada geração de autores que complementam, perpendicularmente, o processo em marcha de conquista internacional de um cinema de entretenimento que não omite as suas raízes no processo de se transformar em algo universal.

Em ambos os casos, são boas notícias para Espanha, e esta primeira obra de Ainhoa Rodríguez afigura-se como muito forte na competição ao Tigre de Ouro no Festival de Roterdão ao contar a história de várias mulheres e alguns homens num pequeno vilarejo interior rural de Espanha, condenado à desertificação.

É uma morte mais que anunciada, lá e cá, mas o que fascina na abordagem de Ainhoa Rodríguez, além do recorrer a não atores, é uma busca transcendental e mágica, numa espécie de realismo ensaiado, de uma nova vida interior, de exorcização de demónios, para depois trespassar isso para o ambiente social em redor. 

Talvez um dos momentos mais hilariantes por aqui seja quando uma mulher vê televisão e num daqueles programas que enchem as grelhas dos canais de manhã, um homem apela à esposa que partiu que regresse a casa pois está muito infeliz. Rindo-se à gargalhada da manipulação emocional que vislumbra, esta mulher vinca aqui muito do espírito deste filme. Uma sociedade feminina que se ri da morte das velhas figuras, espaços artificiais construídos no meio do nada e tradições patriarcais obsoletas – como o próprio casamento que religiosamente define o lugar na sociedade de cada uma das peças do casal. E a cineasta não o faz criando vítimas e predadores, mera luz ou escuridão. Todas as personagens movimentam-se entre esses campos, regidos por algo maior que as conduziu em vida a diferentes posições na sociedade, num jogo entre dominados e dominadores, e os encaminha agora para um lento processo de morte.

Ainhoa Rodríguez tem ainda algumas marcas técnicas entusiasmantes no cinema que aplica, como frequentes wide shots que revelam a erosão humana numa paisagem do interior avassaladora, como se de um western se tratasse. Mas na verdade, tudo isto é a extrema unção a uma forma de vida prestes a ser enterrada, com os últimos homens e mulheres desta espécie, todos longe da juventude, a serem peões de um destino traçado. Ficam ainda no olho as opções frequentes da cineasta em filmar os seus objectos de forma indirecta, seja através do vidro de carros, de espelhos retrovisores, ou portas entreabertas que transformam o espectador num voyeur, aplicando nas suas personagens escapes psicológicos, espirituais, poéticos e gatilhos emocionais para aliviarem o seu sofrimento e inabilidade em mudar as coisas.

Um belo filme que coloca Ainhoa Rodríguez na lista dos cineasta a seguir.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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