Limiar/Threshold (2019) começa com Coraci Ruiz, documentarista e realizadora do filme, revisitando imagens do seu arquivo familiar, relembrando quando foi mãe pela primeira vez, mãe de uma menina (as duas na imagem abaixo), e ela conta esta vivência em voz off. A sua voz vai nos guiar por toda a narrativa fílmica.

Aos poucos, outras imagens do passado familiar vão sendo evocadas da memória, jorradas na tela cruzando com imagens filmadas do tempo presente. A mãe de Coraci conta como viveu a sua juventude, as camadas de tempos, vidas e imagens se mesclam. No escorrer do filme, a documentarista vai costurando o tecido íntimo, familiar com a vida social, numa montagem muito bem cuidada.

Em poucos momentos do filme (e de forma breve), a diretora mostra algumas manifestações marcantes no Brasil dos últimos anos, como as marchas pelos direitos das mulheres e dos LGBTQ+ e os protestos contra o impeachment da ex-Presidenta Dilma orquestrado pelo vice-presidente golpista Michel Temer e os seus comparsas; mostra também manifestações da população contra o atual presidente do país. Mas o filme concentra-se mesmo é no universo familiar, em questões de identidade de género e sexualidade. Um documentário autobiográfico, íntimo e ao mesmo tempo coletivo e perturbador num bom sentido.

Seguimos no fluxo fílmico e o filho Andy (imagem abaixo) explica para a mãe (Coraci Ruiz) o seu conflito interno por não se identificar com o corpo que nasceu, um corpo de mulher, da menina Violeta (mostrada na imagem acima), nome que a sua mãe escolhera com tanto afeto. E isto fez-me lembrar de Clarice Lispector, quando no livro Um sopro de vida, ela escreve/questiona: “Eu, reduzida a uma palavra? Mas que palavra me representa? De uma coisa sei: eu não sou o meu nome”.Andy, aos 15 anos de idade, conta para a sua mãe que o corpo de mulher incomodava-o. Já não conseguia suportar o seu próprio corpo, não se sentia bem e escolheu assumir ser uma pessoa não-binária. E mesmo tendo apoio da mãe, não parece ter sido fácil para ele, assim como não deve ser para outras pessoas trans ou não-binárias. Vale refletir se realmente temos livre arbítrio sobre os nossos corpos e o que é ser feminino e masculino no tempo atual.

Eu assisti Limiar e fiquei impactada, precisei pensar uns dias para depois escrever este texto, é um assunto-confronto para quem não é uma pessoa não-binária. Uma narrativa que cruza vida íntima e social, que coloca em discussão a identidade de género, algo que gera muito preconceito, ainda mais no tempo conservador que o Brasil atravessa. Limiar, rompe fronteiras com o olhar afetivo, poético e cauteloso da mãe Coraci Ruiz. Uma mãe que documenta a transição de género de um adolescente, do seu primeiro filho. Ela e o seu núcleo central familiar quebram a ideia cristalizada de homem, mulher, família e sexualidade. O filme é provocador e corajoso, cheio de tensões, afetividades e subjetividades.

Foi inevitável não pensar na noção de subjetividade de Gilles Deleuze e Félix Guattari (D&G), para compreender as subjetividades e relações de forças que envolvem as personagens do filme, principalmente, o protagonista. D&G apontam a subjetividade como processos de subjetivação-dessubjetivação, argumentando que o ser humano constrói-se em relações e desconstrói-se em outras. A subjetividade seria as linhas que constituem as relações humanas e conectam o indivíduo à sociedade. Segundo eles, somos formados por três tipos de linhas: dura, maleável e de fuga. As linhas duras concentram-se nas dualidades, na determinação social que nos define como: homem ou mulher, normal ou patológico, culto ou inculto, branco ou negro, etc. Já as linhas maleáveis possibilitam variações e escapam ao controle. Enquanto as linhas de fuga são inventivas, promovem rupturas, desfazem o eu com as relações estabelecidas, permitindo o ser humano se entregar à pura experimentação. As linhas de fuga cabem na cartografia afetiva e política das nossas vidas sem nos atar a uma identidade normativa. Elas rompem com o estabelecido, abrem a possibilidade de novas relações, todavia podem levar à fixação de novos estratos. Ao longo da vida, estas três linhas interferem umas sobre as outras e às vezes uma age mais que a outra.

Voltemos ao interior do filme, às experiências e subjetividades de três personagens e gerações que refletem sobre questões de género e sexualidade, a liberdade de ser, pensar e agir de uma família de classe média paulista. A avó, Lena Bartman Marko (na imagem abaixo), graduada em pedagogia na Universidade de São Paulo/USP, presenciou alguns anos da ditadura, viveu em comunidades alternativas nos anos 70 e se considerava libertária. Contudo, diante da escolha de mudança corporal-sexual do neto Andy, ela acaba percebendo que o passar do tempo mudou o seu modo de ver e viver certas coisas. A questão que mais a incomodou está ligada ao tratamento hormonal, as modificações corporais do neto adolescente. Às vezes só percebemos que não estamos preparados para aceitarmos algo, quando as coisas acontecem próximo de nós.

Quanto à mãe de Andy, a documentarista Coraci Ruiz (na imagem abaixo), casada com relacionamento aberto e assumidamente bissexual (ela relata isso ao Andy aos 25’17’’do filme) e mãe de dois filhos. Uma mulher que não sendo nada tradicional, se vê em dúvida quanto apoiar ou não a escolha do filho que é menor de idade, portanto, dependente dela para assinar os documentos e todo o processo que envolve a mudança de corpo e nome. Filho que aos 15 anos se apercebe diferente do seu corpo de nascimento e dispõe-se a encarar o risco e a vulnerabilidade social de se assumir uma pessoa não-binária, de jogar o seu corpo no mundo, valendo-se de linhas de fuga, num momento em que o Brasil vive uma onda expressamente machista, homofóbica, misógina, racista e fascista, avesso à diferença.

Apesar das diferenças entre as três gerações da Avó, Mãe e Filho, talvez possamos considerá-las transgressoras, cada uma a seu tempo e de acordo com as maneiras de ser. Ocorre que as questões de género e as novas sexualidades, ainda são algo novo, trazem muitos conflitos entre distintas gerações e precisam ser reelaborados. E esta é uma urgência que este filme traz e nos convida a refletir sobre este tema que choca ou desestabiliza muitos de nós. As novas gerações experimentam outros modos de ser, ousam mais, são irreverentes e desestabilizam a normatividade de género e de sexualidade.

Coraci apoiou a decisão do filho, mas não queria tomar para si a responsabilidade na escolha da identidade/sexualidade do adolescente, afinal, nesta fase da vida tem-se poucas certezas e arrisca-se muito. Ela acaba agindo através de linhas maleáveis, fluídas, pouco a pouco vai entrando em acordo com Andy. E no processo de documentar a dissolução das dúvidas do filho, de registar a passagem da menina para Andy – de deixar de ser mulher para ser uma pessoa não-binária, a mãe deixa entrever que o seu posicionamento não era uma resistência em assinar ou não os papéis para o tratamento hormonal do filho, embora por vezes ela o tenha questionado, há coisas que precisam de reflexão, que levam tempo para serem apreendidas. E relata que não foi fácil lidar com todo o processo. Imagino que não tenha sido mesmo.

Sobre esta temática do filme Limiar, vale trazer o pensamento do ativista transgénero Paul B. Preciado (1970-), ele que inicialmente era uma mulher lésbica, Beatriz Preciado, e que assim como Andy assumiu outra identidade de género distinta daquela do nascimento e cuja travessia/transição iniciou-se em 2004 com o tratamento hormonal. P.Preciado na atualidade é um pensador internacionalmente reconhecido, em seu Manifesto contrassexual (2002) declara que: “El género es ante todo prostético, es decir, no se da sino en la materialidad de los cuerpos. Es puramente construido y al mismo tiempo enteramente orgânico”. E no texto “Ser trans é cruzar uma fronteira política”, publicado no jornal El País em 2019, ele relata a sua própria experiência: “(..) experimentei a posição que agora é chamada de género fluido. Essa “fluidez” foi possível durante os anos em que me administrei uma dose de testosterona, o que chamamos de “limiar”, porque desencadeia a proliferação no corpo dos chamados ‘caracteres secundários’ do sexo masculino”.

Embora estejamos no Séc. XXI, tais questões abordadas por Paul Preciado e por Coraci Ruiz no filme Limiar são ainda desestabilizadoras para muita gente e, principalmente, para as famílias que passam por este processo. Somado a isso, temos muitos anos de cristianismo nas costas: culpas, ideia de pecado, medo de punição divina, etc, que nos acompanham. Sem esquecer que a maioria de nós identifica-se como heterossexual e somos a maior parte do tempo linhas duras/molares.

Limiar é, portanto, um filme necessário e muito bem-vindo, especialmente, para famílias que passam por esta experiência e para profissionais da educação. No universo escolar, as pessoas não-binárias são discriminadas, muitas vezes abandonam a escola por não serem aceites pelos colegas e pela equipa educacional que não sabem lidar com a situação; um assunto desafiante e no Brasil ainda pouco abordado no cinema.

É um filme imprescindível também para as próprias pessoas não-binárias, uma vez que as relações em suas famílias são muito conflituosas, mal compreendidas e mal resolvidas. Nem todos os pais conseguem entender como as novas gerações lidam com a sexualidade. Muitas pessoas não-binárias são atacadas e mortas dentro da própria família. Andy, que mais para o fim do processo da sua transição mulher>pessoa não-binária, mudou o seu nome para Noah, teve a sorte de ter uma família compreensiva e aberta para aceitar e ajudá-lo no processo desta mudança. Mas nem todas as pessoas não-binárias têm este destino.

Imagens das diferentes fases da transição física/corporal de Andy/Noah 2019-2020

Para cessar a tessitura deste texto, uso as palavras citadas no final do filme pela documentarista Coraci Ruiz: “este filme é uma forma de dar as mãos ao Andy (Noah) e a todos aqueles que compartilham precariedades, com medo (ou coragem) e nadam contra a corrente. Este filme é um jeito de dizer, estamos juntos!”.

Limiar (2019) tem duração de 77 min, estreou dia 12.11.2020 na competição brasileira de longas-metragens da 28ª edição do Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, festival internacional relevante dedicado à temática LGBTQI+. Coraci Ruiz recebeu o prémio de Melhor Direção neste festival. Neste link Mix Brasil x Coraci, está disponível uma conversa da diretora com a equipa do festival. O filme foi selecionado para abrir a competição internacional da 14º edição de outro importante festival: For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Género. A exibição do documentário vai ocorrer ONLINE no dia 12.12.2020, às 18h30 (hora BR) neste link: LIMIAR no RaimbowFestival. Não se sabe ainda quando o filme vai estrear nas salas de cinemas.

No Brasil é muito difícil que filmes independentes e documentários consigam estrear no mesmo ano de produção, pois não existe políticas de distribuição no audiovisual brasileiro, nem mesmo para os filmes que eram fomentados pela Agência Nacional de Cinema-ANCINE. Digo eram porque, infelizmente, as políticas de cinema via fomento público federal estão sendo desmontadas pelo atual presidente, sendo que era esta a principal via de se fazer cinema no país. Este ano apenas um filme foi contemplado com recursos públicos da ANCINE, simplesmente por uma questão de descaso e desprezo com o audiovisual.

Na ficha técnica do filme e outros detalhes, destaco o roteiro e a montagem, feitas por duas mulheres, Coraci Ruiz e Luiza Fagá: https://www.laboratoriocisco.org/obras/limiar/

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
de-uma-coisa-sei-eu-nao-sou-o-meu-nome No escorrer de "Limiar", Coraci Ruiz vai costurando o tecido íntimo, familiar com a vida social, numa montagem muito bem cuidada.