Longe vão os tempos em que a propaganda chinesa estendia a mão solidária a África contra o Ocidente capitalista, tão representado em posters cheios de pessoas sorridentes a cuidar umas das outras ou a lutar lado-a-lado. Há já algum tempo que a relação deste país com este continente é de exploração económica, assentando em velhas linhas coloniais ou criando novas. Sim, porque o colonialismo nunca foi uma relação só de força, apesar desta ter sido necessária no seu início para implementar as transformações sociais que o sustentam, mas económica e persiste ainda, muito tempo depois da presença armada europeia.

Em “Tempos de Canibalismo“, Teboho Edkins, um realizador cuja vida se estendeu por vários continentes e autor de vários documentários sobre comunidades africanas, procurou, apenas com imagens e sem comentário, mostrar o choque entre a presença da China no Lesotho e as formas de vida tradicionais. Com acesso a vivências de ambos os lados, o filme consegue documentar a criação de um novo lumpenproletariado, incapaz de sobreviver mantendo o vínculo ao gado e às relações comunitárias tradicionais e forçado ao trabalho nas estruturas fabris e comerciais construídas pelos chineses, bem como a comprar os víveres em mercados também explorados por estes. A isto adiciona-se a institucionalização e burocratização da propriedade privada, bem como a criminalização de formas de cooperação e acordos não formais existentes. A utilização dos órgãos policial e judicial para perseguir estes e quaisquer outros actos de resistência ou desespero, são o ponto final na impossibilitação de qualquer alternativa ao modelo capitalista imposto aqui pelos agentes de um país que ainda se define, pelo menos em nome, como comunista, e a condenação de milhares à pobreza extrema.

A tensão é sentida continuamente durante o filme, ainda que, para mostrar uma situação em que de facto esta rebenta, tenha sido necessário recorrer a imagens das câmaras de segurança, o que parece indicar que é a construção do filme que cria essa tensão, quando na realidade mostra uma resignação triste e apática. Mesmo esforçando-se por mostrar os dois lados do conflito, a falta de comentário faz com que o que é mostrado e, no final, todo o documentário, assente muito no conhecimento prévio do espectador, como costuma acontecer quando esta decisão é tomada.

Como filme, “Tempos de Canibalismo” mostra uma preocupação estética, com o enquadramento das imagens em exterior a explorar a extensão da paisagem por oposição ao espaço limitado dos interiores. Esta preocupação é também mostrada na imagem final que dá origem ao nome do filme e serve como mote a tudo o que é mostrado. É um início de conversa, mas não se distingue muito de outros documentários semelhantes, nem consegue em algum ponto ser verdadeiramente revelador ou didático.

Pontuação Geral
João Miranda
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