Os planos fixos e longos – alguns dos quais com mais de cinco minutos – serão certamente um desafio para o espectador comum, mas a beleza e crueldade dos mesmos é tão avassaladora e mesmerizante que dificilmente esquecemos esta primeira longa-metragem da realizadora georgiana Dea Kulumbegashvili, ela que no passado já entregara duas curtas no Festival de Cannes (Invisible Spaces e Léthé ).

Entrando por caminhos que nos recordam o cinema de Dreyer, Reygadas (que é produtor executivo) ou Piu, mas com uma identidade muito vincada e um discurso feminino de uma nova voz da terra de Otar Iosseliani, Dea oferece-nos com o seu “Dasatskisi-Beginning’ uma experiência profundamente sensorial, onde se destaca logo à partida a mistura e edição de som e a direção de fotografia assombrosa de Arseni Khachaturan. Depois…depois vem o menos óbvio, mas fulcral: a realizadora e argumentista centra a sua atenção naquilo que a maioria dos cineastas veriam uma personagem secundária, Yana (Ia Sukhitashvili), a mulher do líder das testemunhas de Jeová num vilarejo predominantemente cristão ortodoxo nas montanhas da Geórgia. 

Um dia, e numa estonteante primeira sequência repleta de frenesim, a comunidade de Testemunhas de Jeová fica chocada quando o seu espaço é atacado por cocktails molotov, ficando o local reduzido a cinzas. O calvário de Yana não começa aí, mas ganha novos níveis de  frustração, ansiedade e solidão quando na busca pela verdade é atropelada por uma sociedade que a despreza e a resume a um estatuto secundário, especialmente exposto pela realizadora através do confronto da mulher com um policia (Kakha Kintsurashvili) que desencadeia uma série irreversível de eventos traumáticos, mas também com o seu marido e filho, por quem é notório o crescente afastamento. 

E é nos silêncios, nos planos fixos e longos e na partitura sonora de Nicolas Jaar que o estado mental de Yana se vai timidamente desnudando, como que reportando a sua inquietação permanente e uma busca interna que vai além da paz e alienação. Veja-se por exemplo o momento em que Yana finge-se morta para o filho (um plano fixo de 5 minutos, tão poderoso como desafiante), ou quando caminha pela casa e ouve os seus próprios passos, ou quando, coberta de lama, dores e trauma prepara um banho que se deseja purificador.

Na verdade, o que mais fascina nesta primeira obra de Kulumbegashvili é a liberdade e uma direção capaz de absorver o espectador para um exercício onde a forma e estilo não se impõem à narrativa, mas antes fluem e articulam-se de forma orgânica e natural. Isto mesmo é visível na cena mais intensa e violenta de toda a obra, uma violação, onde a cineasta – bem longe da ação – filma sem qualquer adereço, aproximação ou movimento de câmara, como que recusando-se a dramatizar a situação. E depois dessa violência chegam as outras, que culminam aberrantemente com a vítima a pedir desculpa pelo que sofreu. No meio disto tudo, Ia Sukhitashvili tem um dos grandes papéis do ano e estivesse ela além fronteiras e seria certamente um nome a ter em conta na época dos prémios. 

A não perder…

(crítica originalmente escrita em setembro 2020)

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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