Na Europa, o Outro sempre foi imaginado (num sentido literal, de imagem) de forma monstruosa ou exótica. As representações que aparecem nos mapas e documentos antes do aparecimento da fotografia mostram sempre mais afinidade com a fantasia do que com a realidade. Aqui não estou só a pensar nos povos com cara de cão e afins, mas também no Orientalismo mais recente. A fotografia, que se afasta mais da intencionalidade e é mais aberta ao acaso (para além de ser percebida como mais próxima da realidade), criou algumas dificuldades na manutenção desse imaginário colonial, mas rapidamente se percebeu que poderia ser igualmente manipulada, tanto a nível de técnica (exposições múltiplas, por exemplo), como a nível do que é mostrado (enquadramento, encenação, etc.). Assim, foi rapidamente recrutada pelo processo colonial que, tentando legitimar-se pela sua “realidade”, continuou a sustentar as narrativas de superioridade branca, através das ciências da Antropologia e da Etnografia, que só recentemente começaram a questionar essas raízes e a procurar desconstruí-las (veja-se o trabalho de Johannes Fabian, por exemplo, sobre como a Antropologia cria o seu objecto de estudo de forma ideológica).

Quando o cinema surgiu, em plena época de império colonial, levantou novos problemas: se era possível alterar uma fotografia, uma sequência de imagens revelar-se-ia uma tarefa hercúlea (pelo menos com a tecnologia existente). A montagem (edição) permitia extirpar algo do que não se quer mostrar, mas eventualmente foi mais fácil recorrer à encenação e ao enquadramento para tentar controlar o que se mostrava. Isso e os custos associados fizeram com que a maioria dos filmes iniciais fossem celebrações coloniais de visitas ou festas oficiais. Com a maior evolução da tecnologia e a redução de custos, a produção começou a diversificar-se mas, tanto por razões de ideologia (basta olhar para o “Nanook do Norte”, um filme de 1922 que se pretendia documentário e que acabou por se descobrir como foi quase completamente encenado para exoticizar o que se percebia como mais primitivo), como de censura, a realidade mostrada sempre foi muito limitada.

No caso português, depois do 25 de Abril, um véu cobriu toda a questão da guerra colonial que durava há anos e do colonialismo que durou séculos. Filmes e livros que tocavam nestes temas eram poucos e o imaginário limitado e pensamento colonial foram sendo replicados pela educação e narrativas oficiais de forma inconsciente (veja-se a forma como se escolheu o tema dos “Descobrimentos” para um recente Festival Eurovisão). O arquivo construído por anos e metros de filme também foi negligenciado, como algo vagamente vergonhoso ou curiosidades insignificantes chegando, em alguns países, a ser abandonado. Felizmente há alguns anos que existe um esforço não só de os recuperar mas de tentar descolonizar, isto é, de tornar óbvio o que foi excluído, montado, encenado ou mesmo falsificado. É nessa corrente que se insere “Fantasmas do Império”.

Realizado por Ariel de Bigault, que já antes realizou filmes sobre a diáspora africana em Lisboa, “Fantasmas do Império” tenta, com a ajuda de actores e realizadores que participaram na criação de outros filmes que se debruçaram sobre os temas do colonialismo e da guerra colonial, explorar esse imaginário e mostrar como foi construído ao longo de décadas. Para isso, recorre a imagens desses filmes e sobrepõe-lhes o comentário que vai revelando não só a história da sua produção, mas também as ideias por detrás dela. Mais do que uma mera exploração semiótica, há uma procura de mostrar as relações de poder, as reacções sociais e políticas, e as premissas assumidas na criação destas imagens.

Um filme de ideias que, curiosamente, é visualmente dissonante, com as várias fontes e dispositivos nunca conseguindo a mesma consistência dos pensamentos. Com a complexidade das ideias que são apresentadas, um filme de duas horas também parece pouco, parecendo ser necessário mais tempo para os que não conhecem completamente a realidade desse passado. Ainda assim, não cai em academismos e é acessível, o que é importante no papel que pode desempenhar. É, acima de tudo, um bom início para uma conversa que se vê urgente neste clima de guerra cultural em que vivemos e em que a ignorância e incompreensão destes temas devem ser colmatadas.

[Crítica originalmente escrita em agosto 2020]

Pontuação Geral
João Miranda
Jorge Pereira
fantasmas-do-imperio-o-que-nao-foi-dito-ou-mostradoUm bom início de discussão sobre o passado colonial e a forma como as imagens podem ser usadas ideologicamente