Já em Praia do Futuro, o cineasta brasileiro Karim Aïnouz condenaria um filme inteiro pela promessa de reencontro, mas fá-lo sob a distinção de analisar o tempo como uma memória imutável. Em A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, as passagens temporais são sentidas por entre um ensaio sociológico de um Rio de Janeiro da década de 50.

Baseado no romance Martha Batalha, a nossa “invisibilidade” começa com uma metáfora visual, um denso mato que separa as duas irmãs, desesperadas em reencontrar-se antes da entrada do título que preencherá o ecrã. De seguida, partimos para as duas jovens, Eurídice (Carol Duarte) e Guída (Julia Stockler), restringidas ao seu quarto por entre pactos, segredos e afetos vários. São filhas de imigrantes portugueses e vítimas de patriarcado conservador (nada de “surpreendente” naqueles anos). E é através de uma escapadela que por fim acompanhamos essas vidas invisíveis que se vão complementando por cartas nunca respondidas.

Invisíveis por dois termos: primeiro, pelo constante desencontro entre as duas mulheres que, cada uma à sua maneira, vão-se “fazendo” à vida como podem, com os seus infortúnios e com as suas sortes (bem, escassas diga-se por passagem); e pela interpretação, o papel da mulher nesta sociedade verdadeiramente masculina, diversas vezes sob a justificação de tradicionalismo, ou dos bons valores pregados por homens de batina durante gerações. Poderia ser um retrato de época, esse ciclo condenado do sexo feminino (desde as lidas de casa até ao papel matrimonial e fecundativo), mas esses episódios, tão bem concentrados como vinhetas quotidianas ao invés do descaramento panfletista, convertem este anacronismo como uma analogia à nossa atualidade (e não basta apenas restringi-lo ao território brasileiro).

E o tempo passa, aqui, ao contrário da anterior e referida obra de Aïnouz, é mutável, o redor destas duas personagens separadas pelo destino (interpondo-se como duas narrativas paralelas), altera-se constantemente. Mas o esquemático que poderia suscitar, é uma peça ao serviço de algo mais que somente as leis servientes da narrativa, todo ele é um quadro narrativo, porque o Tempo – com T maiúsculo – tem o seu lugar reservado como o centro desta roda.

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é na sua teoria, um produto melodramático com um quiçá de novelesco, porém, a diferença não se encontra no seu material, mas sim no seu artesão e Karin Aïnouz exibe mais uma vez a sua sensibilidade, a subtileza e sobretudo o seu respeito pelo foro emocional. É sim um filme levado às lágrimas, daquelas tímidas e sorrateiras, que se entrega de corpo-e-alma à dedicação e espírito das suas meninas (Duarte e Stocker) e sob o acabamento de Fernando Montenegro, a “diva” da consolação aos sentimentos que a audiência deseja libertar.

Este talvez seja, possivelmente, um dos filmes brasileiros mais belos dos últimos anos, que entra em diálogo com o mais belo produzido desta década – Elena, de Petra Costa. Ambos tornam-se cúmplices à melancólica derrota do desejo, o reencontro de um amor que só poucos perceberão a sua dimensão e que é disposto como uma busca à eternidade. A união que se desmaterializa como uma fantasia perante ausência.

Pontuação Geral
Hugo Gomes
a-vida-invisivel-de-euridice-gusmao-por-hugo-gomesQuando o Tempo é o inimigo destroi tudo