Contradizendo à ideia romantizada envolto do 25 de Abril, o dia que assinalou a Revolução ainda hoje celebrada, não foi um dito “tampão” da ditadura e do pensamento patriarcal e algo arcaico que se vivia (e que se vive) neste país. O 25 de Abril foi uma ideia suscitada por um evento que se prolongou e o qual se debateu durante décadas, onde ainda hoje inteiramos os seus ecos e por vezes questionamos as suas ações como uma espécie de “negacionismo”.

Contudo, dentro dessa miraculosa insurreição, o fenómeno foi visto de perto pela imprensa estrangeira e outros curiosos que encaravam a “revolução dos cravos” como uma manifestação política-sociológica digna dos trilhos desbravados por Che Guevara na sua “libertação” da América Latina. E dentro desses mesmos curiosos eis que surgem quem deseja implantar uma ideologia política, que poucos anos antes era vista como uma convocação diabólica de comunismo. Pregando a igualdade e fraternidade entre o Povo e a abolição do território privado como ideais primários, a estafeta do comunismo por terras lusas, mais concretamente na zona alentejana, revelou-se mais fantasiosa que o próprio mito fabricado envolta do 25 de Abril. O audiovisual captou isso, por entre as matérias de jornais e propagandistas até ao Cinema.

Dentro desse território cinematográfico, encontramos deliciosamente a mais perfeita das analogias do quanto o Comunismo é somente um edifício de estrutura visível à beira da sua desmoronação, sentido que evidencia uma sátira terrível ao seu conceito, se não fosse o culpado da destruição dessa utopia, uma enxada. Thomas Harlan acompanhou a doutrinação alentejana em Torre Bela (1975) e foi o episódio de uma enxada, não o único, que iniciou uma cruzada à fragmentação de um oásis social prometido. Os gritos do camponês perante a corporativa que tenta arrancar-lhe o instrumento com promessas de partilha pela comunidade, demonstraram a despreparação de um povo desinformado e entranhado num conceito primário e oscilante de igualdade social. Esse foi o “fim”, no qual a fantasia dissipa-se e deixa todo aquele cenário a uma mera experiência social.

E é através dessa experiência que José Filipe Costa cita a sua Linha Vermelha (2012), que por sua vez deixa ecos neste Prazer, Camaradas!, onde ensaia o registo documental com uma ficção embuste, pedindo aos protagonistas dessa doutrina rodeada de chaparros que repliquem os gestos de uma juventude inquieta e cedida a desejos longínquos politizados. Este não é mais um no território da docuficção lusitana, é uma possessão, uma invocação temporal que joga com dois formatos em prol de um objetivo definido. A reflexão de uma “inocência”, uma política ao domicílio que não desgrudou por estas bandas devido à já inteiramente consciência das suas “cobaias”. As causas são fáceis de apurar: o patriarcado enraizado, a submissão religiosa e dos costumes do arco-da-velha, elementos presentes nesta transposição que inibiram qualquer ideia anexada de outros territórios. No fim de contas, o otimismo dá lugar a uma perfeita geringonça operada por descrentes.

O episódio é concebido como um retrato pseudo-antropológico, enviesado num voluntário e fingido anacronismo. É uma atualidade em contramão com o passado retalhado, refém das memórias e da necessidade de rebelar com a nossa contemporaneidade tendo como justificação o fatal saudosismo. Perante tal observatório, José Filipe Costa orienta-se por entre um tom satírico, por vezes trocista para com esta gente empenhada, ou a tentativa de fintar os formatos estabelecidos pelo cocktail de formatos (a dita docuficção). Nesse último aspeto, o onirismo é por vezes convocado para implementar as suas armas (e salientar ainda mais o efeito de miragem quanto ao projeto de doutrinação), e a cinefilia de citação, como a colagem da mítica núpcia de Uma Mulher Casada de Jean-Luc Godard (1964).

Mas no fim de contas, apesar do exercício implícito e do reforço à ideologia sem vingança, José Filipe Costa elabora um filme desafiante no nosso panorama. Não somente a nível cinematográfico, mas uma provocação de dois gumes aos revisionismos que tendem em persistir nos nossos debates políticos.

[crítica originalmente escrita em 2019]

Pontuação Geral
Hugo Gomes
Jorge Pereira
prazer-camaradas-por-hugo-gomesApesar do exercício implícito e do reforço à ideologia sem vingança, José Filipe Costa elabora um filme desafiante no nosso panorama