Gosto do nevoeiro. É um espécie de medo, o qual esqueci. Por vezes, o que esquecemos é o mais importante

João Bénard da Costa disse-o de um jeito sereno e envelhecido, enquanto olhava o horizonte desconhecido através da janela da sua casa. É uma das muitas cenas de Frágil Como o Mundo (2001), a possível obra máxima da realizadora Rita Azevedo Gomes, em que o antigo e mítico diretor da Cinemateca Portuguesa, em modo ator, fazia prevalecer a sua presença como o último dos pensantes e o eterno amante do misticismo. Mas a personagem encarregue de Bénard da Costa pouco saia da sua casa, e nesse seu abrigo entre quatro paredes, relatava diversas vezes o temor pelo desconhecido à sua espirituosa neta.

É certo que entre Frágil’ e a nova obra, A Portuguesa, passaram-se 17 anos. Pelo meio surgiam curtas, médias e longas documentais e um drama inspirado no conto de Jules-Amédée Barbey d’Aurevilly (A Vingança de uma Mulher), mas olhando para esta carreira não muito rica, encontramos um medo … um constante pavor. Não existe um risco no seu Cinema. Aliás, é na sua zona de conforto que Azevedo Gomes se refugia. A comodidade da sua cultura-disponível, dos livros às citações palavrosas, ou dos artistas e cineastas com que se relacionou, referindo e ditando esses mesmo sábios, são elementos que tornam os seus filmes em camadas de saudosismo alternativo.

Por mais pictórico que A Portuguesa (adaptação de Agustina Bessa-Luís de uma história de Robert Musil) seja, as suas imagens estão despidas de qualquer simbolismo e profundidade para além do estético, não existindo, sobretudo, uma ousadia de transpassar a frieza destas. São ilustrações, bonitas ilustrações, cuidadosamente coreografadas, onde destaco o plano-conjunto como a sua língua materna, abordando tudo como gravuras, não vivas, mas dotadas da essência de natureza morta.

Pois … morta! Pois nada aqui vive; os atores são meros bonecos que respiram em prol de um júbilo não-partilhável, alvos a abater para que o cinema dos outros viva. Rita Azevedo Gomes faz um “filme para amigos”, porque nele encontramos as pisadas que os seus “amigos” fizeram e melhor, tendo especial atenção aos ecos deixados por João César Monteiro nos seus tempos de Silvestre ou da memória sempre invocada do épico à Manoel de Oliveira (os despojos de batalha a requisitar os quadrantes de ‘Non’, ou A Vã Glória de Mandar). São interpretações suas que não saem das ciências aplicadas e em A Portuguesa somos conduzidos sobretudo a uma alternativa a essa inexistência.

Sim, é pena que Azevedo Gomes não dê o passo em frente desse circulo de confianças, não avance em direção ao nevoeiro e que enfrente, por fim, os seus profundos medos. A sua visão estética metódica serviria de arma para uma nova vaga do Cinema Português. Ao invés disso, ficou-se pela pintura materializada, sem a existência necessária para brotar.

Pontuação Geral
Hugo Gomes
a-portuguesa-por-hugo-gomesFalta-lhe personalidade ao invés desejar ser o cinema reconhecido e saturado