Jorge (Pedro Hestnes), um escritor de romances eróticos de série B sob um pseudónimo feminino, é constantemente confrontado com uma melancolia diária que afecta a sua autoestima e pretensões profissionais. Sempre desejou uma vida distante daquele “mar de solidão” que o afoga gradualmente. Contudo, os seus desejos tornam-se realidade quando por mero acidente depara-se com um misterioso gravador, do qual contém uma mensagem de suicídio oriundo de um desesperado homem. Nela, ele cita uma morada e um nome pronunciado com emoção. Ao encontrar o paradeiro daquele pedido, Jorge encara-se com Laura (Rita Durão) e o seu filho André, a família perfeita que sempre invejara, mas que nunca conseguira alcançar. Aos poucos Jorge vai vivendo a então vida daquele desaparecido sujeito, um sonho sem fim anunciado, “embrulhado” por eternas juras de felicidades. Porém, enquanto mais se aprofunda nesta sua “segunda pele”, mais ele apercebe do quão distante se encontra da antiga vida.

Um protagonista de tendências voyeuristas desafiado pelo próprio voyeurismo provocado, interpretado por Pedro Hestnes, naquela que foi a sua última contribuição para o cinema português (o ator faleceu em 2011 em consequência de uma cancro). É mais ou menos isto que caracteriza a terceira longa-metragem de Catarina Ruivo (“André Valente”, “Daqui Pra Frente”). Uma obra curiosa que invoca as mais diversas influências estilísticas, desde um neo-noir sombrio, auxiliado por uma melancolia e sombria fotografia mimetizado a pele vestida pelo protagonista, ou pelos toques hitchcockianos, evidentemente o seu “Rear Window” (1950), como podemos assistir na fantasmagórica sequência de voyeurismo, onde Jorge visualiza os seus vizinhos como James Stewart “espia” os seus na referida obra do “mestre do suspense”.

Porém, e como se confirma através desta cena-homenagem composta por um curioso split-screen estrutural (ao contrário de “Rear Window”, o espectador apenas segue de livre vontade o “vizinho a seguir” ao invés da câmara “ditatorial” de Hitchcock), “Em Segunda Mão” exibe-nos uma montra de vida, uma exposição das razões de ser e de fazer voyeurismo, a cobiça e a insatisfação de realização pessoal que nos faz julgar a felicidade dos outros, desejando as suas rotinas e relações. É estranho, mas sob um jeito algo subtil Catarina Ruivo esboçou e dissecou o efeito “marioneta” das suas personagens, a pseudo-naturalidade dos peões viventes e do descontrolo na automatização da vida e relações afectivas. E tal como a grande maioria dessas mesmas relações, “Em Segunda Mão” transfere o dilema do início fabulado, as iminências caóticas e o desinteresse na exploração das ditas na jornada identitárias de Jorge, o eterno homem-marioneta, a travestida criatura do destino.

Com um começo algo trapalhão, de narrativa minimalista e de ligação inexistente entre cenas (atribuindo um tom de descartabilidade em algumas delas), “Em Segunda Mão” possui o trunfo de se adensar ao longo da sua duração. Após ter terminado as introduções e redefinição de objectivos, Catarina Ruivo contorna as reviravoltas dando uma sensação de prolongado clímax. Assim, o filme assume-se conformista ao mesmo tempo sóbrio, espalhando erotismo e dualidade, convertendo-se num impensável thriller metódico. Por último, destaque a Luís Miguel Cintra, a cooperar com a sua forte presença.