Venerado ou odiado, Manoel De Oliveira apesar de tudo integra o nosso panorama cinematográfico e definiu um cinema próprio, imitável por gerações futuras e elaborou uma linguagem fílmica que conquistou o Mundo, sendo própria e reconhecível. Devido a tal, mesmo que grande parte dos portugueses nunca tenha visto um filme do cineasta, sabe contudo identificar a obra do mesmo. Houve tempos em que Manoel De Oliveira era sinónimo de modernidade cinematográfica no nosso país, um movimento vanguardista que se fazia sentir nas influências dos novos cineastas do Estado Novo ou até mesmo na carreira do realizador, sempre no ativo.

Um dos filmes mais importantes foi Acto da Primavera, em 1962, não só essencial na padronização do cinema de Oliveira como um dos marcos para a consistência da docuficção, a união entre a ficção e o documentário, um dos subgéneros mais proeminentes da cinematografia portuguesa. A história da rodagem desta quimera de realidades é tão curiosa como a própria temática do filme- Segundo consta, Manoel De Oliveira estava em busca de cenários para a sua obra Pão (1959) e pelo caminho depara-se com uma tradição surpreendente: a representação de Paixão de Cristo, interpretada pela população da aldeia transmontana da Curalha, uma ilustração da crucificação de Jesus de Nazaré. Após o vislumbre desta cerimónia em comemoração à Páscoa, o realizador ficou maravilhado com o evento e sob um instinto cinematográfico regista tal ocorrência para a posteridade. A citação dos textos escritos por Francisco Vaz de Guimarães do seculo XVI, o Auto da Paixão, desempenhado por um povo crente, emotivo por declarar a sua fé na encarnação das bíblicas personagens que caldeiam com o seu quotidiano rural, por fim um realizador que partilha o tal fascínio algo divino no seu trabalho.

Acto da Primavera resulta num documentário único de um acontecimento hoje raro e inimitável, Manoel De Oliveira definiu aqui a sua identidade, cuja teatralidade torna-se numa das suas imagens de marca e continuidade no resto da sua filmografia. Uma obra envolvente até mesmo para os não-religiosos que sempre podem encontrar o foro cultural e folclórico desta tradição portuguesa. Mas nem tudo são “rosas”, mesmo a jeito de ato primaveril, Manoel De Oliveira não se manteve quieto em transmitir somente o espectáculo e valorizar os “não-atores” nos seus papéis com alma e teve que exprimir a sua fervorosa fé nos momentos finais quando consolida uma rica cerimónia rural com eventos históricos que exprimem o pior da Humanidade.

Imagens da Guerra Colonial, Hiroshima ou Segunda Grande Guerra, puro bélico onde o realizador parece associar com a culpa da negligência judaica na crucificação de Cristo. Ideais teológicos, mas que não resulta em toda a gente. Enfim, excepto esse desvaneio por parte do realizador, temos aqui uma fita exuberante de Manoel De Oliveira, um reflexo da docuficção que nos dias de hoje parece fortalecer no nosso panorama cinematográfico.

Pontuação Geral
Hugo Gomes
panorama-acto-de-primavera-por-hugo-gomesNa humilde opinião deste escriba: o mais importante trabalho da carreira de Manoel de Oliveira