Compreensível, o ruído que vai acompanhando a fanfarra dos remakes. Afinal de contas, ou são desnecessários e só existem por razões económicas; ou são urgentes mas acabam fatalmente por sair com defeito da fábrica, não servindo então outro fim senão o de separar o trigo do joio – eis uma peça do puzzle desse jogo de gladiadores onde no centro da arena encontramos o gosto do público. Nunca viram o original? Abandonem portanto a esperança aqueles que entram na sala de cinema sem terem testemunhado esse momento milagroso. E assim sucessivamente. 

Permitam-me então um desvio: não me recordo de presenciar querelas à volta das incontáveis versões de composições de músicos como Duke Ellington ou Dizzy Gillespie. O que é que tornou um tema como a “Caravan”, numa composição incontornável no imaginário colectivo? Porque é que não há bufão que não tenha curiosidade perante mais  uma interpretação de “A Night in Tunisia”? Pode o lugar que têm na história da música – da arte!-  estar relacionado com o seu estatuto enquanto standards de jazz? E se a interpretação, com melhor ou pior gosto (e assim sucessivamente) for uma modalidade de intervenção e participação cultural com ampla legitimidade artística?

Considere-se o remake de “Goodnight Mommy”, o filme de horror de 2014 da dupla de realizadores austríacos Severin Fiala e Veronika Franz, um objeto que desde então tem vindo a ser celebrado como um dos pontos altos do género na década passada. Firmemente ancorado na tradição do horror psicológico, o filme mobiliza os códigos do género para contar uma história de trauma familiar centrada numa mãe e nos seus dois filhos, os gémeos Lukas e Elias, e um dos seus muitos prazeres passa justamente pela forma como a materialidade do horror nos surge como mecanismo de acesso ao lado mais recalcado da mente humana. Sobretudo pela atenção às possibilidades expressivas da arquitetura (a ação decorre numa casa modernista isolada), mas ainda pela expressão plástica que retiram de alguns adereços (a mãe, uma atriz de cinema,  passa uma boa parte do filme com a cara envolta em gaze cirúrgico).  Dito de outra maneira: trata-se de uma obra com matéria com fundo mais que suficiente para que nela possamos encontrar motivos, arquétipos – standards? – com o poder de nos inspirar hoje e no futuro.

E esse futuro que nos chega hoje é o remake de Matt Sobel. Sobel, um realizador com um percurso discreto no cinema (a sua única longa metragem à data, “Take Me To The River” (2015), não deixou muitas memórias), demonstrou mais recentemente um certo fulgor com “Brand New Cherry Flavour”, uma série para a Netflix que abordava o mundo de cinema a partir de uma Los Angeles noturna, habitada pelos “fantasmas” de David Lynch e David Cronenberg. É aliás essa sua aproximação a um património cinematográfico incontornável no imaginário colectivo que desperta logo à partida uma curiosidade natural perante o remake.

Longe de ser uma interpretação com pontos de fuga que desestabilizem o filme de Fiala e Franz, Sobel trabalha o material original com uma reverência literal – o que não o impede de aqui e ali de deixar a sua marca. E isso no fundo equivale a uma intervenção que de facto tem o seu quê de cosmético, e que à luz do seu trabalho na série da Netflix não surpreende nem desilude: no filme de Sobel a pornografia do gore mais visceral dá lugar a um boddy horror com laivos de onírico e absurdo. Quanto ao esqueleto narrativo está lá todo ossificado, e quando para além disso tomamos em consideração um design de produção exímio, que se cola em cima do original na mesma medida em que o sublima, podemos chegar a algumas conclusões. 

Por um lado, estamos perante um remake que solidifica o arquétipo narrativo e a paleta visual do original, colocando claramente “Goodnight Mommy” às portas de qualquer coisa parecida com um standard. Por outro, não deixa também de reflectir o lado mais industrial da produção: trata-se, também e no final de contas, de uma transposição para um mercado de alcance global de uma produção austríaca, com uma distribuição inevitavelmente mais limitada. E fica também por perceber se a adoração do original se prende com esse estranho fetish que cerca certas produções só pelo simples facto de não serem faladas em inglês (e não tanto, enfim, com qualidades cinematográficas propriamente ditas). Em todo o caso: o remake é bom e recomenda-se. 

Pontuação Geral
José Raposo
goodnight-mommy-o-standard-do-remake Compreensível, o ruído que vai acompanhando a fanfarra dos remakes. Afinal de contas, ou são desnecessários e só existem por razões económicas; ou são urgentes mas acabam fatalmente por sair com defeito da fábrica, não servindo então outro fim senão o de separar o...