Associada às delicadas expressões de Romy Schneider (1938-1982) após o sucesso mundial de “Sissi – Die junge Kaiserin” (1956), do vienense Ernst Marischka (1893–1963), a imperatriz Elisabeth da Áustria (1837-1898) entrou para o imaginário ocidental como uma heroína de novela, à mercê da submissão à passividade romântica. Adaptações cinematográficas posteriores dos seus feitos, como uma minissérie da TV alemã, de 2009, com a atriz Cristiana Capotondi, só fizeram realçar estereótipos sexistas, que alijavam a dimensão política da nobre que orquestrou, silenciosamente, mudanças na estrutura de Poder do seu país. Para notabiliza-la para além dos seus sentimentos, o cinema recorreu a uma autora no auge da potência e inquietação criativa, a austríaca Marie Kreutzer (elogiada na Berlinale de 2019 por “The Ground Beneath My Feet“).

O que ela dá à figura de Sissi é um aporte similar ao que entrega a todas as suas personagens fictícias: um senso de dever e uma sensação de inadequação. Com isso, a sua emancipada Sissi, antenada com o desenho simbólico dos discursos antissexistas dos novos tempos, está mais preocupada com a Corte do que com o seu coração. E antes do que há para ser decidido no seu coração, existem desejos, vaidades, fúria e a certeza de que as suas vontades não são um joguete nas mãos dos homens. E tudo isso ganha corpo e alma na atuação de Vicky Krieps, laureada em Cannes com o Prémio de Interpretação da mostra Un Certain Regard 2022. Nenhuma interpretação ali foi mais intensa do que a dela.

Cada vez mais gigante em cena, a cada novo filme, a estrela luxemburguesa revelada em “Linha Fantasma” (2017) parece mais interessada em Elisabeth da Áustria do que na sua persona, Sissi. O que ela e Kreutzer fazem não é um desenho classicista de uma apaixonada, ainda que, na forma, perceba-se na construção do guião uma ligação com a suntuosidade (sobretudo na vertente épica) do cinema clássico. Há uma luz e um design de produção à la “Queen Christina” (1936), de Rouben Mamoulian (1897–1987). Mas há, ao mesmo tempo, um despertar para a modernidade, uma autocrítica da imagem austera – e, mesmo, da mitificação – que lembram Max Ophüls (1902–1957) e seu “Lola Montes” (1956). Mas as particularidades de Kreutzer, no seu olhar sobre o feminino, libertário, é que tomam as rédeas do filme.

Sissi é a figura decorativa que a Europa abraça como um signo aristocrático de pompa. Mas Elisabeth da Áustria, a real personagem de Vicky, não é isso. É um espírito inquieto, que encara xenofobias e ilusões afetivas em busca do desejo de afirmação. A direção de arte de Monika Buttinger estonteia na reconstrução das lutas de afirmação de Elisabeth, galvanizada por toda a saturação da fotografia de Judith Kaufmann. E a maneira como Vicky esculpe as angústias no silêncio dá uma rica camada existencialista ao filme.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
corsage-descasca-se-o-mito-louva-se-o-femininoSissi é a figura decorativa que a Europa abraça como um signo aristocrático de pompa. Mas Elisabeth da Áustria, a real personagem de Vicky, não é isso. É um espírito inquieto, que encara xenofobias e ilusões afetivas em busca do desejo de afirmação.