O cinema é uma arte acima de tudo sensorial, visual, sonora, e não verbal, disse-nos em San Sebastián a cineasta francesa de ascendência bósnia Lucile Hadzihalilovic a propósito do seu espesso, deslumbrante, mas igualmente assustador “Earwig”, uma fábula gótica de escassas palavras, onde estética é a própria narrativa e a atmosfera sombria e o ambiente hermético envolvem o espectador num pesadelo constante.

Difícil até definir o enredo de um filme que viaja constantemente entre passado, presente e futuro, onde sonho e realidade se fundem de forma críptica transformando o espectador e a sua sugestão num ator ativo no guião, e não meramente passivo onde tudo lhe é entregue com princípio, meio e fim. É este o tipo de exercício que fascina Hadzihalilovic, ela que regressou a San Sebastián depois de “Evolução” (2016) sair de lá – também ele – com o Prémio Especial do Júri.

Earwig”, conto gótico por excelência que vagueia por terrenos pisados frequentemente na literatura e cinema (nos tempos mais recentes, o cinema de Peter Strickland vem à cabeça), conta a história de Mia, uma menina sem dentes encerrada num apartamento, no início dos anos 1950, a quem um homem (Paul Hilton) coloca dentes de gelo diariamente, uma situação temporária já que a pequena será forçada a abandonar o local, como diz uma estranha voz num telefone que de tempos a tempos nos desperta.

A partir desta história, enclausurada no terreno do horror psicológico, mas onde não faltam igualmente momentos gráficos (que bela dentada, Romola Garai), Hadzihalilovic transporta-nos de forma fascinante por entre o inexplicável e não palpável, mas transmitido por uma atmosfera que impele constantemente um ato de estranheza no espectador, provocado desde o primeiro minuto uma sensação de desconforto que vai-se acentuado com um trabalho visual carregado de tensão e nervosismo, e uma sonoridade mais focada nos pequenos sons de objetos em cena, do que numa banda-sonora que repita a tenebrosidade da mise-em-scene.  E fascina todo o virtuosismo desta mise-em-scène, onde a forma detalhada [meticulosa] como a realizadora elabora cada uma das cenas e escolhe minuciosamente os planos, contrasta com o silêncio das palavras que apesar de poucas são eficazes quando invadem o ecrã.

No final, Lucile Hadzihalilovic regressa mais uma vez ao terreno de espaços ou instituições incomuns que albergam crianças inocentes, entregando ao espectador um puzzle cinemático de alto calibre, onde a forma é o próprio conteúdo, e este constrói-se principalmente numa parceria entre a mente do espectador e o que Hadzihalilovic mostra a partir da sua interpretação do livro de Brian Catling que inspirou o filme.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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