O cinema chinês, que tenta escapar às malhas mainstream, continua a mostrar a sua vitalidade no circuito de festivais de cinema em 2021 e “Are You Lonesome Tonight?” é mais um exemplo – como “Gaey War” o foi – que os projetos de pitching de argumento do Festival Internacional de Cinema de Xangai de 2017 foram uma verdadeira incubadora de novos talentos (e curiosamente ambos os filmes têm em si atropelos acidentais).

O sentimento de culpa e redenção, tal como o descodificar as armadilhas da memória, são as chaves de um thriller de forte componente dramática e estética deslumbrante que o novato  Wen Shipei levou a Cannes, Toronto e San Sebástian. 

Passado, principalmente em 1997, no centro da história temos um técnico de ar condicionado, Wang Xueming, que numa noite atropela acidentalmente um homem. Em pânico, Wang desfaz-se do corpo e foge do local, mas progressivamente o sentimento de culpa toma conta de si e ele tenta mesmo entregar-se às autoridades. Ao invés, e no meio de uma tormenta burocrática, o homem prefere aproximar-se da viúva da vítima, a Sra. Liang (Chang), a qual está a ser assediada por dois homens que alegam que o falecido marido lhes deve uma quantia significativa de dinheiro.

Profundamente atmosférico, com o protagonista permanentemente a carregar o fardo da culpabilidade e, de alguma maneira, tentar atenuar esse sentimento que o consome, Wen Shipei constrói um filme que se desenrola entre as sombras da psique e as luzes da realidade, numa jornada labiríntica à procura de respostas, tanto pelo espaços físicos de uma cidade sombria, como à mente de um homem com dificuldade em separar memórias reais de memórias construídas. 

Quando a certo ponto, e numa reviravolta, a mulher do falecido revela ao nosso protagonista que o corpo do marido tinha sido encontrado com duas balas, o filme ganha uma nova dimensão, ritmo e foco, com Wang Xueming a embarcar numa viagem de descoberta e montagem de todas as peças reunidas em torno dos eventos daquela noite, cruzando-se nesse terreno pantanoso com o verdadeiro assassino (Lu Xin) – o qual avistou o seu carro no local do incidente e agora o persegue.

A par de uma estética feérica e de um arranjo sonoro que subtilmente nos enclausura na tensão e desarranjo psicológico permanente do protagonista, o trabalho de compunção do galã de Taiwan Eddie Peng eleva o filme para algo mais que o mero ensaio rotineiro do cinema neo noir que nos últimos anos ganhou especial força um pouco por todo o planeta.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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