Estávamos em 2017 quando  Mehdi Meklat, uma das maiores promessas do jornalismo e literatura, viu a sua vida levar uma volta de 180 graus quando foram descobertos, na sua conta no Twitter, publicações racistas, homofóbicas e sexistas que publicou de 2001 a 2015.

Esta história, que se enquadra perfeitamente no fenómeno que denominamos de “cancel culture”, inspirou Laurent Cantet  na criação do seu novo filme, “Arthur Rambo”, no qual seguimos uma recente estrela do mundo da literatura, já com um olho numa passagem para o cinema, que passa por uma avalanche de críticas nas redes sociais e vê tudo à sua volta desabar: do trabalho às amizades, passando pela própria relação com a namorada e a família.

Com a energia habitual e um olhar realista sobre os eventos, Cantet acompanha o seu protagonista (Rabah Naït Oufella, brilhante) numa descida vertiginosa ao inferno das redes sociais num relato que nos levou até ao que Victor Hugo fez no seu “O Último Dia de um Condenado à Morte”, mostrando-se agora uma nova forma de “assassinar” figuras, através apenas do tribunal da opinião pública, onde a presunção de  inocência, que o direito exige, nao tem qualquer valor. Mas apesar de as questões legais serem mencionadas no seu filme, Cantet prefere centrar a sua luz no derrube das relações humanas em torno de Karim D., que no Twitter anos mantém ä anos uma personagem chamada Arthur Rambo que destila ódio e provocação a cada tweet.

Foi mesmo através desses tweets – que roçam sempre o mau gosto – que ele atingiu os 200 mil fãs, tornando-se numa pequena celebridade no meio online, mas que agora é vista como uma personificação de Dr Jekyll and Mr Hyde, uma verdadeira “persona non grata“.

Integrando texto e sons esfuziantes, ao melhor estilo das redes sociais e “chats“, em complemento äs peripécias que a vida de Karim lhe apresenta em apenas 48 horas, Cantet fez o primeiro grande filme sobre o tema dos “cancelamentos”, sem que para isso tenha de tomar posição e entregar uma opinião com o seu de maniqueísmo. Ao invés, ele cria uma conversação e estimula a reflexão sobre a direção da atual justiça popular e a verdadeira importância das palavras.

[Crítica originalmente escrita durante o Festival de San Sebastián]

Pontuação Geral
Jorge Pereira
arthur-rambo-laurent-cantet-nas-malhas-da-cancel-cultureLaurent Cantet cria uma conversação e estimula a reflexão sobre a direção da atual justiça popular e a verdadeira importância das palavras